Duas famílias cabo-verdianas estão a disputar a autoria de uma das mais antigas mornas gravadas, com semelhanças nas letras e melodia, processo dificultado pela falta de registo oficial original.
Em causa estão as semelhanças entre as mornas "Prisão", popularizada mais recentemente na voz de Neuza de Pina, e a morna "Ano Novo", com os filhos dos respetivos autores a reclamarem publicamente a autoria original. A morna, género musical típico de Cabo Verde, assinala em 11 de dezembro de 2022 os três anos da proclamação como Património Imaterial Cultural da Humanidade pela UNESCO.
De um lado da disputa está Roy Job, do Mindelo, ilha de São Vicente, que garante que o pai, Jorge Job, gravou a morna “Ano Novo” antes dos anos 1960 e que a mesma já foi interpretada por outros autores.
“Já falei com pessoas de mais de 70 anos que dizem conhecer a morna desde pequenos e que é do meu pai, até mesmo pessoas de outras ilhas”, afirma Job, cujo pai, nascido em 1928 e falecido no ano passado, é autor de diversas obras. O homem lamentando que não tenha tido a oportunidade de registar aquela morna, visto que na altura a prática não era comum.
“Muitas mornas escritas eram cantadas por toda a gente e os créditos não eram referidos ao seu verdadeiro autor, apenas como música popular cabo-verdiana ou ‘direitos reservados’”, acrescenta.
Roy Job, que retira qualquer responsabilidade de Neuza de Pina, que recentemente popularizou a outra versão da morna, na sua perspetiva, acredita que a morna possa ter sido ouvida pelo outro autor, que se sentiu identificado com a letra e resolveu escrever e cantar uma versão que diz ser parecida.
Do outro lado da contenda está António Alves, da ilha do Fogo, que diz que a morna “Prisão” conta a história do pai, também António Alves, preso em Angola há mais de 50 anos.
“Estamos a falar dos anos 70, estando dentro da prisão, a única saudade e lembrança que tinha, ele transmitiu-as nas cordas de um violão, assim como confirma o amigo e ex-carcereiro Caetano, vivo hoje e o nome que faz parte da morna”, afirmou à Lusa António Alves, que representa o pai, atualmente com problemas de saúde.
Ainda assim, lamenta que o assunto esteja a ser tratado publicamente, já que a nova versão da música foi lançada há um ano por Neuza de Pina, sua esposa, e a dúvida sobre um possível plágio deixou-o incrédulo.
“Conhecendo o meu pai, o quão orgulhoso que ele era, ele seria incapaz de copiar música alguma. Fiquei chocado, ainda porque ele não está numa posição de se defender de nada”, frisa.
António Alves afirma que a morna “Prisão” ja se encontra registada, no entanto, diz-se triste de ter de chegar a esse ponto. “Por acaso estive a ouvir a outra música que dizem ser a original e vi que tem mesmo semelhanças. Agora é difícil fazer insinuações e pôr em causa a veracidade da história do meu pai assim como está a acontecer. Nós estamos a falar dos anos muitos antigos, onde muitas músicas de Cabo Verde vieram de outras músicas”, alega.
Os versos iniciais de ambas as mornas são idênticos, pelo que a presidente da Sociedade Cabo-verdiana de Música (SCM), Solange Cesarovna, garante que investigações em casos de letras idênticas devem ser feitas e que dependendo da comunicação estabelecida entre as partes, os casos podem ser resolvidas dentro da instituição ou nos tribunais. Contudo, alerta que para que os autores ou herdeiros possam exigir direitos autorais, as obras precisam de ser registadas.
“Existe um processo que em Cabo Verde é instituído com as melhores práticas internacionais da defesa dos direitos autorais que já vai com mais de dois séculos. São justamente os códigos identificadores das obras e das gravações musicais, bem como os códigos identificadores dos autores e dos artistas que os permitem fazer parte do processo profissional da gestão coletiva e que permite à SCM cobrar os direitos autorais aqui e a uma escala global”, expõe a presidente.
A SCM pretende, além do registo das novas obras, promover nos próximos três anos a recuperação do espólio de obras cabo-verdianas gravadas e escritas ao longo da história e que têm valor para o repertorio musical do país.
“Não foram registadas anteriormente porque não havia ainda um serviço profissional de registo de música em Cabo Verde", afirma.
A organização tem um "um plano estratégico entre 2022 e 2025, em que uma das prioridades é o registo destas obras", incluindo "a digitalização, a inserção dele no catálogo mundial das obras registadas" e assim ser possível "dinamizar uma maior proteção e de cobrança de direitos autorais de tudo o que é música cabo-verdiana”, sublinha.
Neste trabalho de catalogar músicas gravadas ao longo dos tempos, e sendo que muitas delas são património cabo-verdiano, Cesarovna garante que pode ser feito pelos familiares, mas também pelo Estado.
“Estamos a falar claramente de obras em que os autores podem-se inscrever diretamente na SCM ou representantes através de congéneres, por exemplo, e no caso de não estarem mais entre nós, pelo desaparecimento físico, a lei cabo-verdiana permite que os herdeiros tenham mais 50 anos após a morte do autor para usufruírem enquanto herança legítima da propriedade intelectual do criador. Após os 50 anos, cai no domínio público e assim todos são chamados a colaborar, o Governo também pode juntar-se às iniciativas da SCM ou a outras iniciativas de investigação e colaborar naquilo que for possível ou necessário para que não sejam esquecidas ou não fiquem no anonimato, uma vez que são do usufruto do país e de todos os cabo-verdianos”, acrescenta.
O número de músicas cabo-verdianas por registar na SCM é desconhecido, no entanto a entidade projeta a data de três anos para que a maioria seja inscrita e os autores possam receber os devidos valores patrimoniais angariadas.
“Ao nível nacional defendemos mais de 1.400 artistas e desses, quase 400 são de São Vicente, fazendo com que a ilha seja a segunda maior em termos de número de inscritos. A nível mundial defendemos mais de 950 mil titulares de direitos e mais de 26 milhões de obras e gravações musicais”, explica a presidente da SCM.
A Semana com Lusa
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