O Guerreiro veio ao mundo num palco onde a peça da “liberdade” era encenada com os punhos serrados e o olhar sempre a mirar o nada. Cresceu numa temporada em que os manuais escolares exalavam um único perfume ideológico, e a melodia da pátria soava mais a passo marcado do que a esperança cantada. Ainda assim, foi crescendo. Crescendo sob a supervisão zelosa de um comando solitário, que, apesar de se dizer “guardião”, tinha um jeito afetuoso bastante singular: controlado, apertado e, às vezes, sufocante como abraço de cobra. E agora, com o coração inflamado, peço que todos se ponham de pé… e entoem comigo a independência:
Por José Mendonça Monteiro*
Cinco décadas escorreram como areia entre os dedos, e o Guerreiro, agora com desilusões mais fundas que trincheiras, murmurou consigo: “Para isto se empunhou a bandeira da liberdade/Democracia?” Talvez, haja mais estradas, mais antenas, mais discursos… Mas a dignidade dos mandantes?O Zezé de Nha Reinalda escreveu e cantou: “ KA TEM NINGUÉN KI CRÊ NHA TERRA MÁZ KI MI, BASTA DÁM UM TXON NA PRAÍNHA I GARANTI NHÁ MUDJER TRABADJU NA TACV”… Se me fosse dada a palavra, disse ele, com voz ainda firme, eu clamaria por autonomia verdadeira, democracia efetiva, e pela equitativa partilha do pão, porque a independência/Democracia não é um decreto festivo, mas uma peleja que recomeça todo amanhecer. E por isso, antes que a voz se cale de vez, ele exige, que, pela última vez, ajoelhados ou em pé, gritem com ele, a esperança (desejada pelo artista Norbeto Tavares):Nôs Cabo verde di sperança (...)/Mas sperança ka é só di xinta spera/Ka nu dexa tudo só pa stado fassi(...)/Nu djunta mó nu compu nós terra...
Ainda assim, foi crescendo. Crescendo sob a supervisão zelosa de um comando solitário, que, apesar de se dizer “guardião”, tinha um jeito afetuoso bastante singular: controlado, apertado e, às vezes, sufocante como abraço de cobra. E agora, com o coração inflamado, peço que todos se ponham de pé… e entoem comigo a independência:
Sol, suor, o verde e o mar,
Séculos de dor e esperança;
Esta é a terra dos nossos avós!
Fruto das nossas mãos,
Da flôr do nosso sangue:
Esta é a nossa pátria amada.
Viva a pátria gloriosa!
Floriu nos céus a bandeira da luta.
Avante, contra o jugo estrangeiro!
Nós vamos construir
Na pátria imortal
A paz e o progresso!
Nós vamos construir
Na pátria imortal
A paz e o progresso!
Ramos do mesmo tronco,
Olhos na mesma luz:
Esta é a força da nossa união!
Cantem o mar e a terra
A madrugada e o sol
Que a nossa luta fecundou.
Viva a pátria gloriosa!
Floriu nos céus a bandeira da luta.
Avante, contra o jugo estrangeiro!
Nós vamos construir
Na pátria imortal
A paz e o progresso! (Cabral, Esta é a nossa pátria amada)
Na alvorada da esperança, o Guerreiro, recém-desmamado das ideologias de panfleto vermelho, saudou com entusiasmo o tal vendaval democrático que prometia banhos de humanidade e um cardápio variado de opiniões. A sensação térmica era de liberdade! Só que, com o tempo, foi-se percebendo que alguns dos novos condutores do comboio democrático vinham com o cheiro do velho regime ainda na lapela. Passaram-se cinco primaveras, e como quem tenta outra vez o mesmo prato esperando sabor diferente, apareceu um novo grupo, todo ele reluzente em discurso sobre progresso e igualdade. Chamavam-se “Convergentes” e tinham como missão incluir tudo e todos… inclusive os nomes já conhecidos dos porta-retratos governamentais. Quando o século decidiu virar a página, eis que irrompeu outro coletivo de salvadores: os “Renovadores”, alegando que o sistema precisava de atualização, tipo software de telemóvel. Mas vamos ao ponto: renovar, no nosso teatro político, raramente é sinónimo de mudar o enredo. Dito isso, meus caros concidadãos, levantem-se comigo e cantem em uníssono a democracia:
Canta, irmão
Canta, meu irmão
Que a liberdade é hino
E o homem a certeza
Com dignidade, enterra a semente
No pó da ilha nua
No despenhadeiro da vida
A esperança é do tamanho do mar
Que nos abraça
Sentinela de mares e ventos
Perseverantes
Entre estrelas e o Atlântico
Entoa o cântico da liberdade
Canta, irmão
Canta, meu irmão
Que a liberdade é hino
E o homem a certeza!, ( Silva; Lopes, Hino da liberdade)
Logo que soaram os clarins anunciando o fim do império do “manda-chuva único”, uma nova trupe desembarcou no palco: senhores engravatados, com diplomas plastificados e discursos copiados dos manuais de convivência cívica das grandes potências. Mal colocaram os pés no chão da terra libertada, apressaram-se a dividir o espólio do Estado cada um estendendo as mãos suadas para um pedaço da máquina pública, como se estivessem participando de um sorteio de Natal. Um verdadeiro “arrendamento patriótico”, com ata lavrada ao som de hinos e promessas, jurando que era tudo em nome do povo que, claro, assistia de longe e calado.
E assim nasceu a tal “transparência”, com uma claridade tão escuras como os vidros e pára-brisas dos veículos dos adúlteros, que circulam nas pontas estranhas nas horas de ponta.
Não é general, nem assessor de gabinete, é apenas alguém que não enlouqueceu. E isso, em tempos de lucidez rara, já o faz um veterano de duas guerras silenciosas: uma travestida de união pátria sob o grito único, e outra enfeitada de eleições, mas com os bolsos sempre ocupados por mãos alheias.
Cinquenta voltas ao redor do sol depois do tão proclamado “corte do cordão umbilical”, o que restou? Ah, dizem que somos donos do nosso próprio destino. Mas o Guerreiro, nascido em tempos de promessa, pergunta: será mesmo que a tal independência não virou apenas um contrato de prestação de serviços com os antigos senhores? Dizem que gerir é bonito, que governar dá muito trabalho e que autonomia custa caro. Mas se autonomia exige deixar de pedir, por que é que insistimos em estender a mão? O Guerreiro, que já não engole moedas pintadas de ajuda, percebeu que o vício da gestão virou arte, arte de administrar verbas alheias, planos alheios, e sonhos patrocinados por estrangeiros de gravata e auditórios climatizados. Agora que os ventos anunciam o fim do “Papai Noel da Cooperação”, a famosa Millennium Challenge Corporation, o povo das ilhas, sem os presentes de sempre, tem pela frente um raro espetáculo: governar com o que é seu, sol escaldante, brisa inquieta, mar abundante, localização invejável e, por que não, céus sobrevoáveis mediante bilhete pago. Quem sabe assim, deixamos de mendigar nas festas da diplomacia.
Se Ruanda, Botsuana e Vietname deixaram de lamber feridas coloniais para levantar a cabeça, por que não o Arquipélago do Guerreiro? O palco está montado. O teatro da gestão já cansou o público. É hora de subir ao ato principal da governação verdadeira: criar, produzir, investir.
Mas quando o Guerreiro espreita o combate à corrupção, encontra miragens jurídicas. E quanto às leis sobre património? Brilham só no Diário da República. Alguém viu, alguma vez, um dos senhores do “não-declaro-mas-enriqueço” ser chamado ao palco da Justiça? Parece que, num sistema feito de papel fino, só se cumpre o necessário para dizer que se tentou.
Contam pelos becos da Ilha-Mãe que o tal Estado é de todos. Uma falácia elegante. Na verdade, pertence aos portadores de sobrenomes dourados, herdeiros das linhas nobres que, logo após o corte da fita da independência/Democrcia, assumiram as chaves do cofre público. Por aqui, currículo não serve. O que vale é a certidão de batismo com pedigree político. A labuta? Uma relíquia esquecida. Por milagre ou maldição ancestral, os filhos dos heróis de ontem já nascem com crachás de hoje: se não chefiar ministério, ao menos distribui sorrisos em alguma embaixada ou faz pose no parlamento. Porque é preciso blindar o clube e polir o brasão das famílias fundadoras.
A democracia que fez a doação de um vulcão, ( Monte-Jora) a uma família, e que até ainda não evitou que as água interiores e/ou as zonas costeiras, venham a constar como objetos das convenções antenupciais ou testamentário.
Nas escolas de filosofia, diziam que governar era arte nobre: um equilíbrio entre juízo, ética e o bem comum. Aristóteles chamava o bicho humano de “político por natureza”, e Platão avisava que, se os bons se afastarem da lida pública, os espertos e oportunistas tomarão o trono.
Mas eis que em Cabo Verde, enquanto a tal Independência se esforça para manter os méritos guardados a sete chaves e empacotar o talento em caixas de mediocridade, a nossa versão tropical de Democracia resolveu investir na engenharia da ilusão: distrai, confunde e veste o interesse privado com a farda do interesse público.
Cinco décadas escorreram como areia entre os dedos, e o Guerreiro, agora com desilusões mais fundas que trincheiras, murmurou consigo: “Para isto se empunhou a bandeira da liberdade/Democracia?” Talvez, haja mais estradas, mais antenas, mais discursos… Mas a dignidade dos mandantes?
O Zezé de Nha Reinalda escreveu e cantou: “ KA TEM NINGUÉN KI CRÊ NHA TERRA MÁZ KI MI, BASTA DÁM UM TXON NA PRAÍNHA I GARANTI NHÁ MUDJER TRABADJU NA TACV”… Se me fosse dada a palavra, disse ele, com voz ainda firme, eu clamaria por autonomia verdadeira, democracia efetiva, e pela equitativa partilha do pão, porque a independência/Democracia não é um decreto festivo, mas uma peleja que recomeça todo amanhecer. E por isso, antes que a voz se cale de vez, ele exige, que, pela última vez, ajoelhados ou em pé, gritem com ele, a esperança:
Nôs Cabo verde di sperança (...);
Mas sperança ka é só di xinta spera;
Ka nu dexa tudo só pa stado fassi(...);
Nu djunta mó nu compu nós terra;
Cada um di nós é um Cabral (...);
Nô Cabo verde vive só di sperança;
Sperança ma um dia nu tá vive dreto;
Sperança ma um dia nu pode símia;
Nu côdji, nu kúme (…);
Sperança tá continua ti ki dia?
Ki dia ki nos Cabo ta vira Verdi?, ( Tavares, Nós Cabo verde di sperança)
---
*Licenciado em Direito;Técnico de Segurança Pública ;Pós-graduando em Direito Penal e Direito Processual Penal militar
Terms & Conditions
Report
My comments