“Algo não vai bem. Dá para sentir no ar. Qualquer coisa de suspeito está em algum canto”. Após a fala solene, foi à janela e gritou um “cala-boca” severo com os cães que não paravam de ladrar. Havia grandes e pequenos, eram quatro ou cinco e pelo menos dois eram desses que vêm de regiões frias. “É”, pensei comigo, “pobres animais, nestes beirando quarenta graus... Ladrando seu desconforto”.
Por Léo Rosa de Andrade*
Mas, todos naquela casa amavam muito os cães. Seus três filhos bem nutridos, sobretudo, declaravam amor aos cães, seja quando os vizinhos protestavam contra odores e barulhos, seja quando ele mesmo tinha ímpetos de se livrar daqueles bichos aos quais ninguém prestava muita atenção. Contudo, ele amava muito os filhos e os filhos amavam muito os cães, então, fica assim. “Danem-se os cães.”
Algo não ia mesmo bem. Atendeu ao telefone, alguém lhe queria falar, mas algum filho escuta suas músicas em volume impeditivo. Não dava para conversar. Já se incomodara noutro dia por causa desses “hábitos modernos”. E justificou-se: “Jovens são mesmo assim, não vou polemizar”. Ele gritava, o sujeito com quem falava gritava também. Notei que estava vermelho, vermelho além do normal.
Um pouco tonto, pronto-socorro. No caminho, reclamou: “Esse mundo de ganância, isso acaba com a vida. As coisas estão fora do lugar. Os políticos roubando, os juízes roubando. Malditos ladrões. Impostos para sustentar essa corja; não há dinheiro que chegue”. Exames. A pressão disparada. Prescrições médicas, causas do estresse... Cuidaria, talvez, do assunto: “É de ver... A vida não para.”
A conta telefônica. “O que é isso?” Alguém, como saber quem!? Mas, alguém naquela casa gastara uma fortuna ligando para Conselhos Matrimoniais. Quem seria tão insensato? “Malditas iscas da existência, maldito consumismo que explora até fraquezas sentimentais.” Imprecou o capitalismo. Desabafou sobre o desrespeito do mundo. Estava seguro: “Algo deveria ser feito, só não sabia o quê e nem quem.”
À noite, a pensar: “Só não vê a falta de nexo de tudo com tudo quem não quer enxergar. Esses sinistros canibais humanos devoram tudo, devoram-se”. Não concluiu sobre solução. Não dormiu em paz. Levantou-se cedo, abafado. Já havia algum tempo não respirava bem. Devia ser a poluição do ar: “Todo mundo conspurca o planeta”. Deu-se na rua. Ensimesmado em cogitações, circundou o quarteirão.
Parou na frente da própria casa. Encontrou-se observando o lixo a ser recolhido. Pôs-se a olhar os sacos com as sobras do seu dia. Tomou-se por uma vontade descontrolada de vasculhar os detritos: “Quanto desperdício. As pessoas são incentivadas a descartar, não refletem, não sabem quanto custa comprar as coisas”. Acreditou que deviam educar as crianças do mundo, assim como ele educou as suas.
Entrou, serviu-se do que comer. Absorto, lerdo, mal ouvia o caminhão rangente moendo seus entulhos, os cães ladrando, os familiares discutindo, o telefone tocando, a obstinação da buzina. Uma dor desagradável no peito. Passado o susto, lembra, acabrunhado: “Canalhas! Eu caído, eles discutindo sobre quem me levaria ao hospital”. Aí, mordaz, acrescenta: “Maravilha! O mundo não é tão mau assim”.
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* Doutor em Direito pela UFSC, Psicanalista e Jornalista.
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