Uns veem Juno na nuvem que passa, enquanto outros observam a mesma nuvem na esperança de chuva. Tal como Quixote via gigantes onde Sancho via moinhos. E na foto, o que vê?
— Olha que cãozinho adorável!
— Olha que não, é só a mala no chão.
Os olhos nem sempre veem claramente. O que vemos pode ser filtrado por fatores os mais diversos, em especial os que estão dentro de nós.
A repetição dum mito que explica a nuvem. A perturbação do cavaleiro da triste figura. Um objeto cuja aparência momentânea ou circunstanciada é imediatamente processada como a de um cãozinho fofinho.
Iludiu-se o interpretante — neste caso, a adolescente Hannah Murphy que há dois anos fotografou, e postou no Twitter, o que esperava ser um adorável cachorrinho. Interpretou o que viu, de acordo com o que eram as suas expectativas, decerto influenciadas pelo seu conhecimento do mundo e os afetos envolvidos.
Uma ilusão de ótica, ou um erro de percepção de novo reproduzidos — ao longo destes dois anos na rede social, onde lá continua a sucsitar interpretações como as que relatadas no parágrafo inicial — por quem esperava ver ao pé da dona um cão e não a mala. Uma mala no chão? "Eu nunca ia pôr a minha mala no chão, que nojo". Ou, talvez, porque há superstições ligadas ao colocar a mala no chão, ou outra razão, mesmo sem (aparente) razão.
As certezas perante a complexidade do real exigem mais do que ver. Obrigam a ver "com olhos de ver", expressão corriqueira mas que para ser provada — e para não ser pleonasmo — obrigaria a uma longa dissertação.
Ou, dito mais chãmente: Ver como Sancho e sonhar como Quixote.
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