Músicos e estudiosos da morna, estilo musical cabo-verdiano que na quarta-feira completa cinco anos como património da humanidade, queixam-se da falta de um elo de ligação às escolas e às gerações mais novas.
“Acho que os jovens precisam de ser mais expostos à musica tradicional”, diz à Lusa Luís Firmino, 30 anos, antes de subir ao palco, na Praia, com o seu cavaquinho, para interpretar clássicos do género que faz parte da identidade do arquipélago e que o mundo conheceu graças ao tema Sôdade de Cesária Évora.
“Reclama-se dos jovens, que não querem saber”, mas “com tanta influência de fora, é preciso haver mais oferta”, nos ‘media’ e em espetáculos, diz, ao recordar as suas próprias vivências: natural da ilha de São Vicente, onde reina a música, sempre esteve “exposto ao violão”.
Como resultado, Luís Firmino fez da música vida, aperfeiçoando-se, tocando cordas em ruas movimentadas do Algarve ou em projetos como o coletivo Acácia Maior, até à estreia a solo na Praia, no início deste mês, perante um público pequeno, mas conhecedor e sedento por mornas.
“A morna nunca vai sair de dentro do cabo-verdiano”, diz Paulo Lobo, promotor do espetáculo e um dos fundadores da editora Insulada, dedicada à música tradicional das ilhas.
Mas para a morna ter “um futuro mais robusto, uma coisa essencial é a educação”, ou seja, é preciso levá-la “para as escolas, apostar na história da música cabo-verdiana como disciplina obrigatória, estudar os compositores, os músicos”.
O estatuto conferido há cinco anos pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) trouxe mais alguma atenção e debate e até levou o produtor Eurico Évora a incluí-la como estilo obrigatório no concurso Todo Mundo Canta.
“Mas é preciso apostar na juventude, porque só assim a morna vai ter continuidade”, diz Eurico, reclamando apoios, por exemplo, “na logística”, sendo recorrentes as queixas de músicos sobre as taxas nos voos interilhas pelo transporte de instrumentos musicais.
São medidas de apoio que podem servir de “empurrão das instituições”, como diz Paulo Lobo, para, depois de “uma fase menos boa”, a morna capitalizar o seu estatuto e tirar partido de uma “nova geração”.
O cavaquinho que já se faz ouvir no Palácio Ildo Lobo, no Platô, centro histórico da Praia, é prova dessa esperança: “fico feliz por estar a representar essa geração”, diz Luís Firmino, antes do espetáculo.
Mas não é o único: noutra noite, no mesmo palco, Eri Manuel, 20 anos, vence a timidez e, acompanhado ao piano pelo veterano José Afonso, solta a voz numa morna que o levou a Roterdão depois de ganhar o concurso Todo Mundo Canta.
A Semana com Lusa
“Os jovens de Cabo Verde não estão muito ligados à morna e era bom que o estilo se expandisse, que houve mais oportunidades” para tocar e para ouvir, conta à Lusa.
Eri é mais uma história de alguém de São Vicente que, desde pequeno, foi exposto à música, incentivado em casa a tocar violão, com que começou a tocar mornas, ao vivo, até ao ensaio em que a voz sobressaiu – e de instrumentista passou a vocalista principal.
“O meu sonho é fazer disso vida”, confessa à Lusa.
O investigador César Monteiro, com vários trabalhos publicados sobre a morna, defende mais recursos e uma estratégia para a intervenção institucional: “falta dinheiro, falta orçamento. A execução de um plano de salvaguarda passa necessariamente por dinheiro”.
“Não se pode falar da preservação da morna, da sua projeção e divulgação, sem se falar da educação e da investigação”, realça, em entrevista à Lusa.
“Se eu não investir na educação, através da criação de academias, levando a morna para as escolas, e se não investirmos na investigação, corremos o perigo de permitir que aquela forma de tocar antiga desapareça”, acrescenta.
Afinal, se a morna, “há 50 anos, era tocada de uma maneira, hoje já não é assim”, misturando-se com outros estilos, surgindo, por exemplo, “a morna ‘jazzificada’”, refere o investigador.
“Qualquer cabo-verdiano sabe, se estiver na China ou a dormir, que está a ouvir morna e depois começa a ouvir jazz. Há gente que gosta, outra que não, mas a investigação também deve privilegiar essa faceta”, refere.
O ministro da cultura, Augusto Veiga, foi empossado em agosto e recebeu como missão do primeiro-ministro “revitalizar o processo” de promoção da morna, porque “depois da pandemia de covid-19 parou um pouco”.
“Existe um orçamento para o próximo ano para valorização da morna no âmbito dos 50 anos da independência Cabo Verde”, com concertos, publicação de novos trabalhos de investigação, lançamento de uma gala, novos apoios e criação de uma casa museu de Cesária Évora, em São Vicente.
Augusto Veiga valoriza o trabalho já realizado pela bolsa de apoio para acesso à cultura, um programa dos seis aos 18 anos, que coloca 4.000 alunos de 103 escolas em contacto com várias atividades, incluindo a música tradicional.
“A bolsa poderá revelar mais talentos no próximo ano e vamos fazer uma gestão” por forma a promover as promessas do mundo artístico.
Originária do século XIX, a morna reflete uma mistura de estilos musicais africanos com influências da modinha luso-brasileira, de acordo com o dossiê que sustentou a candidatura a Património Imaterial Cultural da UNESCO.
Interpretada em crioulo cabo-verdiano (também há peças só instrumentais), dedica-se a temas lírico-passionais, de forma melancólica.
Marcada pelas letras do poeta Eugénio Tavares (ilha da Brava, 1867 - 1930) e, mais de tarde, de Francisco Xavier da Cruz ou 'B. Leza' (ilha de São Vicente, 1905 - 1958), entre outros, o género alcançou um pico de notoriedade mundial através da cantora Cesária Évora (1941 - 2011).
A proclamação da UNESCO foi feita em 11 de dezembro de 2019, na 14.ª reunião anual do comité intergovernamental, em Bogotá, Colômbia.
A Semana com Lusa
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