terça-feira, 20 maio 2025

Sob a égide do Sol e do Harmatão:Um aedo-tributo ao meio século de livre caminhada da nossa gente - Segunda Parte

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Jano Júnior de mil habilidades fez essa interpelação banhado em lágrimas e caído aos pés da hierarquia. Para o nosso majestoso e completo regozijo, o capitão cedeu diante dos clamores dos seus indefetíveis subalternos e J foi imediatamente incorporado. Lembro-me como se fosse hoje a luz de gáudio que lhe cingia o rosto, jovial, combativo e generoso. Pupilo não deixou os seus créditos em claudicantes mãos errantes e cumpriu com excelente notoriedade todos os rigores da nobre condição, tanto na Galé, aquando da nossa exigente preparação, como na nossa acastanhada Atlântida de então, após o nosso triunfante regresso ao berço da nossa herdade. Na impoluta perfeição, diria o cabrestante Júlio de Roma. O nosso estroso Jano Júnior tinha peso de um frango, mas em matéria de feitos militares nenhum de nós o igualava ou superava, nenhum, por mais que esforçássemos.

Por Domingos Landim de Barros*

 

 

Depois de lhe ter franqueado o coração em como não lhe falharia no quesito de lealdade, Pupilo Hesperitano ficou tranquilo e confiou-me o resto do seu amigável desabafo. Encarei-o de perfil e anui - «O que acabas de dizer é verdade. Ainda recordas do dia da livre-decisão, que brevemente comemora cinquenta anos de pompa? E da súbita ventania, que colocou o lenço da nossa mimosa ninfa-pupa à meia-haste, depois de começar a galgar o mastro, sobre um chão pelado e raso, sem pétalas em volta, sem alfobres e prédios imponentes, sem ribeiras verdes de expetativa? Quantos da nossa geração já não terão deixado de vivenciar a terra prometida, por causa sobretudo do excesso da bebida e do tabaco?». E ele, sempre escorreito e atencioso - «Sim, com certeza, mas tenho de ir». Alongou-me o braço e despediu-se do antigo cúmplice e trafulha dos idos da vida militar. Pupilo deu-me as costas e pôs-se a andar.

Pareceu-me aéreo e néscio, um tanto leve, justamente igual a um destacado general, que depois de décadas de renhidos combates à causa de atrozes desavenças internas, decidira optar por se render às forças do governo, de um país africano amigo e da nossa luzente comunidade de língua e dos afetos. Passado um tempo, o vencido da guerra deu a cara na TV estatal, estando robusto e bem-disposto. E eu, aprendido que tinha ficado com aquela magnífica experiência, comparei os dois exímios militares e concluí - «Se o meu impoluto camarada doutra altura não voltar a tocar na bebida e no tabaco, no próximo ano, quando voltar, ele vai ter de me pedir para o reconhecer. Estou confiante na sua redenção e imploro o céu por ele». Foi exatamente isso que aconteceu, na minha mais recente passagem pela cidade. Não vou descrever a conversa que tivemos. Somente digo ao leitor: gostei imensamente de rever o meu antigo companheiro de caserna.

A passear na rua pedonal, alguém ecoou o meu nome do outro lado do passeio - «Fragoso, Fragoso! Sou J». Pois, só por inicial da apelação do seu ídolo de farda o tratávamos, na nossa aprimorada companhia de elite ou de guarda pretoriana. - «Já não me conheces?», desafiou-me ele. Virei o rosto e qual não foi meu espanto de rejubilo ao avistá-lo. Senti uma aura de bênção e de paz acercando-nos. Como escrevi algures, sou leal e completamente devotado aos meus amigos, que sequer me permito escarnecê-los ou beliscá-los, por nada do planeta. Tanto mais tratando-se do J, o prestativo que cobria todas as minhas habituais ausências no quartel. Eu, na Unidade, havia sido um reconhecido “desenfiador”, um reiterado fugitivo das horas vagas. Todos sabiam disso na nossa honrada corporação. E o J, o eminente compatrício de fina estirpe, tinha desculpas sempre alinhavadas e prontas na ponta da língua, para safar a pele do seu compincha, a manquejar a toda a hora face às regras do RDM. Foi magnífico reencontrar o meu brioso colega de exceção e de infindáveis traquinices: readquirido, pujante e munido de melhor nimbo, no sorriso e na pelica. A princípio era Pupilo.

Depois, passámos a chamá-lo J, em razão do seu culto desmedido e obcecado, nunca escondido ou regateado a um valoroso e bravo combatente da liberdade da pátria, que respondia pelo gracioso nome Jano Jaime ou simplesmente Jano-Jano. E eram procedentes da mesma parcela do território nacional. O probo Jano em miniatura chegou a confessar que era um cioso dervixe dessa emblemática figura dos áureos períodos da luta e que a tomava por modelo de inspiração e de futura escalada para o sucesso. Pupilo Hesperitano entrou na tropa com apenas dezasseis anos de sopro. Nascera para vida militar como planta se arrasta para borda da fonte ou para margem do rio. Era o mais novo de todos nós. Tinha partido de uma família bem referenciada na luta clandestina e nas matas da Galé, onde as redanhas de quintessente categoria tiveram palco.

O comandante do centro de instrução político-militar experimentou uma arrepiante hesitação, com enorme vírgula silente de reticência em relação à envergadura do fantástico garoto e correlativa aptidão para o serviço de sólidos coturnos, não querendo de maneira nenhuma tê-lo nas fileiras, porque segundo sagazmente argumentara - «Acontece algo de errado a este miúdo de inquebrantável boa vontade, toda a responsabilidade cai-me em ombros e a minha carreira por água abaixo». Apesar da vacilação preliminar do capitão, os oficiais e sargentos intervieram e nós, os cretinos e recrutas, fizemos uma vibrante corrente espirituosa a favor do ingresso do caçula que, rastejado no chão de desespero, chorava e lastimava convulsivamente. Tal era o seu amor pela castrense indumentária e pelo espírito de corpo. O na iminência de rejeição questionou o timoneiro e fundamentou em prol da sua egrégia causa da seguinte espantosa forma - «Por que me quer adiar o que para mim é um célebre desígnio, uma honorífica missão, a concretização de um sonho antecipado?».

Jano Júnior de mil habilidades fez essa interpelação banhado em lágrimas e caído aos pés da hierarquia. Para o nosso majestoso e completo regozijo, o capitão cedeu diante dos clamores dos seus indefetíveis subalternos e J foi imediatamente incorporado. Lembro-me como se fosse hoje a luz de gáudio que lhe cingia o rosto, jovial, combativo e generoso. Pupilo não deixou os seus créditos em claudicantes mãos errantes e cumpriu com excelente notoriedade todos os rigores da nobre condição, tanto na Galé, aquando da nossa exigente preparação, como na nossa acastanhada Atlântida de então, após o nosso triunfante regresso ao berço da nossa herdade. Na impoluta perfeição, diria o cabrestante Júlio de Roma. O nosso estroso Jano Júnior tinha peso de um frango, mas em matéria de feitos militares nenhum de nós o igualava ou superava, nenhum, por mais que esforçássemos.

Era o mimetismo de um equilibrista e lesto gato líbio, em tudo o que empreendia, para a integral degustação de toda a nossa companhia. Ele só deixou a vida castrense porque encontrou trabalho na maior empresa pública da época, onde ganhava triplo do que auferia nos quartéis. Empresa que, no entanto, seria mais tarde privatizada, nos ardores e balbúrdias do multipartidarismo e em razão de um novo modelo económico a ser seguido. Acabou por reduzir o número dos seus engajados colaboradores, drasticamente. J foi um dos contemplados com a medida. Sem se queixar de absolutamente nada e de ninguém, recebeu a sua parca indemnização e procurou uma outra saída profissional. Foi uma imensa pena ter-se desaproveitado as requintadas qualidades de um militar de tão alto desempenho e gabarito. Pupilo ou Jano Júnior, como também por vezes era apodado, em virtude da sua descomunal versatilidade, uma pedra de valiosíssimo quilate de diamantes no epicentro da nossa diária convivência.

Cantava, tocava viola, jogava à bola e ténis, pingue pongue e todos os lúdicos ofícios da mesa ou da parada. Magistralmente sobredotado a declamar versos dos mais cintilantes e maiores vates da nossa terra. Além de um deslumbrante fascínio para contar estórias, adivinhas, apotegmas morais, as picantes e saboridas anedotas. Uma alma reluzente de toda a nossa boa disposição no limite dos quatro muros retangulares. Para já nem falar da sua veia desportiva e da sua queda natural para nos bater a todos, nos torneios que se organizavam por ocasião das datas comemorativas das grandes façanhas de valentia. Ele jogava encantadoramente bem, tanto no campo como na mesa. No campo, era a força motriz da sua equipa. Na mesa, ganhava quase sempre sozinho. Vencia todos os concursos de índole patriótico, musical e literário.

Nadava de tal modo alucinante, que era um estonteante assombro e privilégio olhar para ele a dar braçadas na mítica baía da nossa urbe. Por vezes era na praia da antiga Capitania que o menino da Ilha de Lume nos punha a derreter de orgulho nele. Chegava a ser o príncipe das vagas encapeladas do reino aquático, o azafamado tubarão branco da nossa azulada água marinha. J, o homem de momento daquela altura e verdadeiro líder impulsionador de todas as altruístas atividades, em várias facetas da vida. Eu nunca tinha visto, até então, alguém com tanto talento e charme, plural encantamento, polivalência ou multifacetismo, com contagiante espiritualidade do nível dele.

Uma tarde, na capital da Galé, depois de divertida tocatina na unidade, J e eu fomos dar um passeio a uma bolanha. Atraídos por duas formosas raparigas, que no dia anterior tinham passado em frente à nossa guarnição e quiseram namoriscar-nos com um aliciante convite de as visitar. Bem-recebidos no Chão de Papiro, o régulo local, um destacado militante do partido de retinta estrela escura, usando uma sumbia sobre a tola, imitando o seu adorável herói do povo, quis saber qual era a razão da nossa ida. Sentado debaixo da copa de um frondoso pé de imbondeiro, depois de nos cumprimentar e mandar servir o lanche, o “homi grandi” tirou do bolso um rosário feito de coral e chifre de mamute, empreendeu umas obscuras cerimónias, olhou para J e vaticinou - «Pupilo, estás a gostar da minha sobrinha, Sisa Luemba».

E para mim - «E tu, Fragoso, anseias a minha própria filha, Aidé Djamila. Portanto, vejam lá bem. Se quiserem casar, a gente arranja as coisas da forma mais airosa e proficiente. Caso contrário, é melhor não sujarem a fonte de múltipla confiança de irmandade».  

...

*Na pose de Fragoso Landgrávio

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