José Luiz Tavares nasceu no dia de Camões em 1967, em Chão Bom (cercanias do antigo Campo de Concentração), concelho do Tarrafal, ilha de Santiago, Cabo Verde. Estudou literatura e filosofia em Portugal, onde vive em exílio voluntário, dedicado à sua obra. Publicou vinte livros, desde a sua estreia em 2003, com Paraíso Apagado por um Trovão. É o escritor mais premiado de Cabo Verde, tendo recebido, no seu país e no estrangeiro, entre outros, os seguintes prémios: Prémio Revelação Cesário Verde/CMO, Prémio Mário António de Poesia/Fundação Calouste Gulbenkian, Prémio Jorge Barbosa/AEC, Prémio Pedro Cardoso/MC, Prémio de Poesia Cidade de Ourense, Prémio BCA/Academia Cabo-verdiana de Letras, Prémio Vasco Graça Moura/INCM, Por três vezes consecutivas recebeu o Prémio Literatura para Todos do Ministério da Educação do Brasil.
Entrevista conduzida por: António Cabrita, Revista Colibri Noir (nº3)
Escritor sem papas na língua e por isso também reconhecido como acerbo polemista, José Luiz Tavares, ao contrário de tantos, nunca calou em casa o que criticava fora.
O seu mais recente livro Perder o pio a emendar a morte (editado pela The poets and dragons society, agora em outubro), escrito em março/abril de 2020, durante o primeiro confinamento provocado pela covid 19 e retomado em fevereiro de 2021, enquanto o autor padecia de infecção pela doença, é o pretexto para uma entrevista com este cabo-verdiano de excelência e para uma pequena selecção de poemas deste mesmo livro.
Lê-se na Cronobiografia Literária com que fechas o extenso “Perder o Pio a Emendar a Morte”: «O Grande Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa foi o primeiro livro não-escolar e não-religioso com o qual teve contacto, encontrado pelas bandas do anti¬go Campo de Concentração do Tarrafal.». Achaste-o, perdido atrás de uma árvore, num arrabalde? Foi graças a este tomo (1500 páginas, na edição que tenho) fazendo de almofada (ou seja, por incubação onírica) que te tornaste um dos poetas em língua portuguesa com maior extensão vocabular? Por que foi tão vital para ti uma apropriação tão exaustiva da língua do antigo colono?
R: Nos primeiros anos de independência o antigo campo de concentração do tarrafal foi transformado num centro de instrução político-militar. Depois de a minha mãe ter emigrado em 77 para Portugal, eu e os meus irmãos ficámos num vaivém entre parentes e familiares. Calhou eu ter ficado com uma tia que vendia bananas, mangas, pão, doces, às portas do quartel. Por vezes calhava-me fazer essa tarefa. Às vezes também circulávamos pelo perímetro do quartel, indo jogar à bola ou simplesmente assistir aos jogos entre os soldados. Foi numa dessas deambulações que encontrei o tal dicionário, não atrás duma árvore, mas debaixo de um canhão 76 (milímetros) com recuo. Ainda hoje penso se não foi esse facto que me transformou num maquisard, um polemista sulfuroso, o mais belicoso poeta da literatura cabo-verdiana, na peugada do meu ascendente intelectual, o grande poeta em língua cabo-verdiana e polemista temível, Eugénio Tavares.
Não sei se sabe ou não, mas a maior parte dos cabo-verdianos tem uma relação traumática com a língua portuguesa. Nesse tempo ia-se para a escola aos sete, oito anos, às vezes sem nunca teres ouvido pronunciada uma única palavra da língua portuguesa, e de repente vês-te na contingência de, por dons do espírito santo, teres que compreender e responder automaticamente em língua portuguesa, como se esta fosse a tua língua natural.
O encontro com esse dicionário foi uma espécie de epifania, uma superação do trauma, e ao mesmo tempo um alargamento incomensurável do meu mundo, dado que, por via das palavras, pude intuir um universo muito mais vasto do que a pobre realidade física e humana circundante. Um mundo que ia de «absconso» ao «zeugma».
Acreditas que se pode ser um poeta da mesma valia, independentemente do maior ou menor manejo de vocábulos?
R: Talvez se possa ser, não há um receituário universal. Há poetas notáveis que podemos ler sem recorrermos uma única vez a um dicionário. Olha, é o caso do Fernando Pessoa. A complexidade dele não se estabelece ao nível vocabular, mas no plano da ideação, dos jogos linguísticos, até ao patamar do mais insuperável paradoxo.
No meu caso, que concebo a poesia com um corte radical com a fala (comum), o uso desses vocábulos raros não cumpre nenhum intuito ou programa preciosista, porquanto constituem o meu léxico poético natural (se é que alguma coisa há de natural num léxico) e o seu uso, na sua feição barroquizante, é uma espécie de pedra no caminho da leitura, para evitar o embalo do leitor, obrigá-lo a voltas e travagens bruscas, mantê-lo sempre desperto.
Só com o pecúlio das palavras, sem o conhecimento e a capacidade arquitectónica, pode-se ser um bom dicionarista, um ilustre Doutor Johnson, ou o Mestre Tamoda, personagem do célebre conto do mesmo nome, do autor angolano Uanhenga Xitu, mas nunca poeta prenhe de potência, trazendo o ser à presença, nesse processo de revelação que os gregos denominavam aletheia, e nós chamamos simplesmente poesia.
Uma irmã mais velha por vezes escondia-te os livros, com o argumento de que poderiam enlouquecer-te. Olha, o Victor Hugo, segundo o Jean Cocteau, era um louco que julgava ser Victor Hugo. Não achas que a tua irmã tinha alguma razão?
R: Essa não conhecia, mas é muito bem achado. Na verdade, o livro é uma invenção diabólica, que o mundo inteiro teme, pois, em vez de transportar o homem para as lonjuras do sonho, puxa-o de supetão para os abismos da realidade. O Mikel Dufrenne na sua fenomenologia da percepção estética diz-nos que a pregnância duma obra se avalia por esse tipo de operação de acercamento da realidade que o mundo da obra abre. Não por acaso, os tiranos viram sempre o livro como um inimigo a exterminar, tendo alimentado intermináveis fogueiras pelos séculos fora.
No meu país nem é preciso queimá-los porque há um tenaz abandono, só se lembrando deles para efeitos meramente propagandísticos (e nisso o atual incumbente da coisa cultural é sagaz) ou para espetar essas quinquilharias de latão, a que chamam condecoração, no peito dos escribas acocorados (que só se levantam para isso) ou acantonados miseravelmente nos enclaves partidários, de olhos gulosamente direcionados às migalhas com que um poder inócuo, mas pérfido, os domestica.
Sim, o livro, a literatura, por comportar sempre um excesso alucinatório, faz-me pensar muitas vezes que sou eu o josé luiz tavares, autor de alguns milhares de páginas, quando não passo de um inveterado exterminador de cervejas.
«Apesar de bolseiro da fundação Calouste Gulbenkian, foi morar com os pais, emigrados desde a década de 70, no bairro da Pedreira dos Húngaros, na cintura negra e suburbana de Lisboa», lê-se na Cronobiografia. Vivias num bairro de lata, com o chão de terra e o zinco por tecto (imagino) mas nunca esmoreceste, nunca te conheci complexado, e depois de teres tirado dois cursos superiores e de amealhares uma chusma de prémios, nos anos recentes fizeste por dois anos parte do júri do Prémio Camões e do Prémio Oceanos por igual período. Vamos ao óbvio, mas que gostava que explicasses aos jovens moçambicanos: nada disto acontece sem muitos quilómetros de leitura, ou sim?
R: Os anos da Pedreira dos Húngaros foram um tempo de grande felicidade, de mais leituras, escrita, embriaguez, do convívio humano caloroso com esses desterrados nos morros do mundo de que dou conta no livro «As Irrevogáveis Trevas», que esteve para sair em Moçambique, na Cavalo do Mar, edição essa que, infelizmente, não se concretizou.
Ora, quando cheguei a Portugal, aos vinte anos, eu vinha com milhares de horas de leitura, de livros que muitas vezes sequer estavam traduzidos em Portugal, mas que me chegavam através do Centro Cultural Brasileiro da Praia, que ficava a cinco minutos do bairro de pescadores onde eu vivia.
Os livros deram-me um sentido do ser, de revelação e humanidade, de bravas angústias existenciais, mas também de liberdade e autoconfiança inimagináveis num rapaz meio tímido, que teve a primeira namorada apenas aos dezoito anos.
Acho que os jovens moçambicanos não precisam de nenhum conselho meu, nem os tenho para dar: cada um tem que chegar lá pelos seus próprios descaminhos, mas por aquilo que me tem sido dado a ler estão na via certa.
Vejo uma geração de poetas, nem todos eles de igual valia, mas formando um impressivo conjunto. São os casos do David Bene, Álvaro Taruma, Mbate Pedro, Amosse Mucavele, e ainda esse mais novo, o Otildo Guido, a levarem com crescente segurança a bandeira da poesia moçambicana (de que o último notável expoente é o Luís Carlos Patraquim, a quem assentava bem, e sem demora, o Prémio Camões) bem alta, num labor que tem tido a clarividência de certas instituições, como a Fundação Leite Couto, a embasar o percurso sempre angustiante que vai da criação à edição.
Também é verdade que nesse processo já vi grandes fraudes, promovidas no Brasil e até em Cabo Verde, mas como não sou moçambicano não tenho que me importar com isso, embora, segundo a lei de Gresham, a má moeda, como sabemos, tende a expulsar do mercado a boa moeda.
Outra coisa que notei é a morte da autenticidade poética, por via de um epigonismo desastroso em relação a Herberto Helder. A grande sereia da poesia portuguesa da segunda metade do século xx, depois de ter esfarelado inúmeras vocações poéticas em Portugal, faz as suas vítimas agora em Moçambique. Conseguirão esses fugir ao seu canto sedutor, ainda que tenham de se amarrar às pedras de todos os abismos, até que o sangue vertido seja simplesmente deles, não de qualquer epigonal transfusão, mas quando muito duma sábia e madura incorporação, timbre dos poetas autênticos? Oxalá o consigam esses.
Aos outros o único alerta que faço é percorrerem pacientemente o caminho de pedras, não cederem ao deslumbramento com as nomeações para prémios com jurados estrategicamente colocados, com os festivais e outras mundanidades literárias, que a mor das vezes são lugares de tráfico de egos que nada acrescentam à obra feita ou a fazer.
Em 2004, ganhaste o Prémio Mário António, da Funda¬ção Calouste Gulbenkian, atribuído ao melhor livro de um escritor africano ou timorense publicado no triénio 2001-2003, mas logo a seguir recusaste uma homenagem do Congresso de Qua¬dros Cabo-Verdianos na Diáspora. Em 2010, recusaste a medalha de primeira classe da Ordem do Vulcão, outorgada pelo Presidente Pedro Pires. Razão apresentada: a idade e, sobretudo, a banalização das condecorações. Mais tarde, em 2015, recusas pela segunda vez uma condecora¬ção honorífica, desta vez a Ordem da Primeira Classe do Dragoeiro, proposta pelo presidente da República Jorge Carlos Fonseca. E justificaste que não a aceitaste na condição específica de escritor, e não a aceitarias na condição lata de personalidade da diáspora. Contudo, em 2017, Rua Antes do Céu, é apresentado em Cabo Verde, no auditório do BCA em Chã de Areia, e quem apresentou o livro foi o mesmo Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca. Portanto, nada te pessoal te movia. Entretanto somaste uma série de prémios, nacionais e internacionais, que não recusaste. És da linhagem do Bartleby, só para as condecorações? Queres falar um pouco da dimensão ética associada ao exercício da escrita e da liberdade do escritor?
R: Julgo que quem escreve pode fazê-lo por múltiplas e variadas razões, mas não para receber o reconhecimento ou benesses do poder. Pode fazê-lo por simples sentido lúdico, por visceral necessidade existencial, por entusiasmo estético, por impulso histórico ou por propósito político. Todas essas dimensões devem emanar ou concretizar essa livre liberdade rimbaudiana, ou essa finalidade sem fim kantiana. É certo que as circunstâncias de tempo e lugar pesam mais em nós, escritores do sul, nós originários de países saídos há apenas meio século do domínio colonial, e em que o propósito de edificação do estado soberano nacional tem nos escritores um dos seus pilares ou esteios de edificação.
Sucede que, bastas vezes, esse tipo de literatura se esqueceu que tinha que ser antes de tudo literatura, um esteio e bastião da liberdade. Essa falsa urgência ou necessidade fez com que abundassem nesses tempos e espaços obras completamente falhas, porquanto vinham carregadas de ideologia, no mau sentido, vinham a transpirar apriorismos, que mais as faziam manual duma qualquer catequese do que verdadeiras obras de arte. É o caso, ainda hoje, no meu país, de determinadas obras pseudo-épicas serôdias, convictas ainda que o rótulo épico é um valor em si. Lessem Ezra Pound com a devida atenção.
Os meus propósitos são infinitamente mais modestos: deixar um perecível testemunho sobre esta terra onde fomos esperados e, se puder, dizer um só segredo a um só ouvido, na magnífica e feliz expressão da Luiza Neto Jorge.
Traduziste já para a língua cabo-verdiana Ode Marítima e outros poemas de Álvaro de Campos, tal como os sonetos do Camões. Contudo, em 2022, apresentaste em Lisboa a tua primeira obra escrita integralmente em língua cabo-verdiana, «É ka Lobu ki Fase». Duas perguntas se impõem: a) O que pretendias exactamente ao traduzires para crioulo o Camões e o Pessoa? b) Corremos o risco de gradualmente a tua obra adoptar a umbrela do crioulo, ou trata-se, como a sístole a diástole, de pulsões complementares?
R: A ideia destas traduções surgiu-me logo no início deste milénio, pouco depois da minha estreia em livro, escrito em língua portuguesa, em 2003. Embora eu nunca pensasse escrever em língua cabo-verdiana (aliás tinha enormes reservas mentais, por razão da minha ignorância), a partir desse livro inaugural pus-me a pensar na razão disso. E a conclusão, pessoal, a partir da minha experiência, e apenas para responder às minhas inquietações, era porque não dispunha de um corpus poético suficientement apelativo e diversificado que constituísse um modelo suficientemente forte que me atraísse para a escrita poética em língua cabo-verdiana, porquanto, salvo raríssimas excepções, o que existia era de âmbito da oralitura (literatura oral), ou mimetizando os seus temas, códigos e processos. Daí, não tendo eu próprio capacidade para tentar algo diferente (embora escreva em língua cabo-verdiana, não me considerava há até bem pouco escritor nessa língua), formou-se na minha cabeça a ideia de que, no imediato, tal corpus só poderia advir por meio da tradução de obras da literatura universal.
A maior dificuldade foi não ter um modelo erudito na língua de chegada, problema bem agudo na tradução dos sonetos de Camões, dado que as formas fixas requerem ainda uma muito maior plasticidade linguística e sedimentação literária na língua de chegada, e também a necessidade de distanciar suficientemente o poema traduzido da língua original, para evitar as falsas familiaridades e similitudes, se tomarmos em conta que a base lexical da língua cabo-verdiana é o português, mas a morfossintaxe não tem nada que ver com ele ou com a regência das línguas românicas.
A escolha da Ode Marítima e de outros grandes poemas de Álvaro de Campos para essa realização em particular, foi devido à relevância desses poemas no quadro do primeiro modernismo português e das suas características que os tornam perfeitos para a elaboração duma alta dicção poética em língua cabo-verdiana.
Quanto à questão da criação poética numa língua ou noutra, vou navegando nessa espécie de heteronomia linguística, consoante o poema venha ou me peça esta ou aquela língua. É um processo pacífico.
Que delírio é esse da Escola Portuguesa da Praia ter proibido que os alunos falem a língua mãe - nem nos intervalos? Continua, esta atitude?
R: Não sei se essa proibição continua ou não, mas ela nunca devia ter existido. Dito de forma mais contundente: os cabo-verdianos, as autoridades nacionais, nunca poderiam ter permitido essa afronta à soberania nacional e esse acto de selvajaria civilizacional. Mas o caso da proibição, pela Escola Portuguesa da Praia (de os alunos cabo-verdianos falar a sua língua materna, até nos intervalos), deriva da circunstância de profunda alienação identitária duma pseudo-elite bronca (mas com extensões, por mimetismo, às camadas populares), e do renascimento de teses e ideias lusotropicalistas e adjacentistas, tempestivamente derrotadas pela história, mas ainda assim com penetração em novos e velhos movimentos de índole política ou cultural, que tentam negar a nossa condição peri-africana, insular e crioulófona, ainda que convenientemente e manhosamente macaronésia, para tentar disfarçar, mais do que a diluição natural, a soberba na rejeição da África ancestral.
Infelizmente, essa atitude dos supremacistas linguísticos pode levar a que a língua portuguesa, que passa neste momento por tremendos desafios em Cabo Verde, e que terão de ser necessariamente vencidos, venha, no espaço de gerações, a ter uma presença social efectiva absolutamente residual, o que nos empobreceria como povo, nação, agregado civilizacional ou simples humanos. Mas de cada vez que os supremacistas linguísticos (cabo-verdianos e/ou portugueses) tentam entravar, humilhar ou rebaixar a língua cabo-verdiana, muitas vezes com a cumplicidade ou a indiferença das autoridades nacionais, é a língua portuguesa que cria um espírito de rejeição nos cidadãos que não aceitam barganhar o seu brio de cidadania linguística e identitária, para tristeza de todos nós que batalhamos por uma pátria verdadeiramente bilingue.
Tens lastimado que depois de ti (que vais nos 56) não se enxerga um poeta de vulto no panorama da literatura cabo-verdiana. O que se passa? Atribuis esse deserto a quê? Como estamos de livrarias e bibliotecas em Cabo Verde?
R: Não sei se consigo fazer esse diagnóstico. Será falta de leitura? De talento natural? De um ambiente cultural propício à eclosão de vozes novas e consistentes?
Há sensivelmente um ano alfinetei uns moços e moçoilas, literariamente cheirando ainda a cueiros, mas sempre muito intrépidos e industriosos, benza-os deus, nessa cloaca chamada redes sociais, esses que só querem palco, por já se acharem escritores. Uma dessas pataratas tontas, obrante, no sentido fisiológico, duma prosa cagativa, insossa e minguada, própria para imbecis sem dois neurónios, veio afanosamente à praça, de trombeta no lugar do cérebro, ufanar-se de que ninguém lia o José luiz tavares. Pudera, iam fazê-lo como?, com as partes, se cérebros não possuem para tanto? E mais disse a ranhosa estouvada: que se eu quisesse seria o mentor dessa maralha. Mas eu vim a este mundo para ser guru, deixar discípulos ou seguidores? Para isso têm o ventoso vicente. Eu vim para tentar criar a minha própria singularidade. Vão mas é peidar-se para o tik-tok ou para o instagram, ou para o diabo que os carregue, mas intuo que nem o demo queira saber dessas nulidades ventosas.
Grave é que há gente a editá-los, jornais a divulgá-los, enquanto criadores sérios são mantidos na obscuridade. Mas esse gosto pela patranha, não o inventaram eles, conceda-se: há velhos e velhas, caducos e caducas, a venderem-nos, veramente, os seus versos e prosas estafados e miseráveis há trinta, quarenta anos, sem que tenha aparecido um simples lúcido para dizer: alto aí, tudo isto é um amontoado de inanidades, um crime ambiental por tantas árvores que obrigam a ser abatidas.
É triste, mas a realidade é essa: a literatura cabo-verdiana, tirando dois ou três nomes, é hoje uma espécie de chá de comadres em que, à falta de verdadeiro talento e fogo nas ventas, quase tudo se resume a um ensaio da serenata da coitadinha.
Alguns poderão repreender-me, justamente, dizendo que águia não se preocupa com minhoca, mas se gigantes não há, e só essas vérminas temos, como não empreender, de tempos a tempos, uma higiénica e desinfestante varredela?
Quanto às bibliotecas, estamos conversados: a Biblioteca Nacional, que deveria ser a casa da literatura, tem estado, no reinado do actual ministro, entregue a gente que, mesmo se com boa vontade, é literalmente incapacitada em matéria de entendimento da criação, ainda que encham a boca e o currículo com sonantes títulos académicos. Em matéria de literatura, o quesito devia ser simples: que livros leu o senhor ou a senhora? A resposta haveria de ser elucidativa, mas não causaria espanto numa terra em que jornalistas literariamente inimputáveis escrevem continuamente «o seu mais novo livro».
Uma dessas vacuidades ululantes, aquando dumas tonitruantes vergastadas ao ministro da coisa cultural, embora vistam a mesma camisola, em vez de realçar o intuito pedagógico do cometimento, recomendou-me humildade, como se eu não comesse e cagasse isso todos os dias. A única humildade que conheço é perante a minha obra, com a qual estou sempre insatisfeito, insatisfação essa que me obriga a persistir horas e horas infindas na busca de um sentido para o nosso estar aqui. É claro que a ventosa irredenta caçou mais de um milhar de likes. A vacuidade e a necessidade rendem hoje que nem «fresquinha» em dia de calor.
Casos há que merecem ponderação e redireccionamento. A Câmara Municipal da capital acolhe anualmente um encontro de escritores num hotel, sem nenhuma adesão popular ou impacto quer nas comunidades, quer nos jovens, no sentido de os despertar para a leitura e a escrita. Essa mesma Câmara Municipal, que não possui uma única biblioteca (no concelho creio existirem duas comunitárias), realiza há muitos anos sem interrupção um festival de música de praia (portanto, vai-se repetindo de vereação em vereação. Não o inventaram os do turno atual) cujo orçamento anual daria para equipar várias bibliotecas comunitárias, um bom instrumento de esclarecimento intelectual, lazer construtivo e empoderamento espiritual, com vista à diminuição da violência galopante que tomou conta da nossa cidade.
Existem três livrarias ao nível da capital, e creio que mais duas numa outra ilha. É manifestamente pouco. Existe um plano nacional de leitura, mas duvido que tenha os meios para fazer um trabalho impactante. Em oito anos do reinado desse ministro da coisa cultural houve editais para tudo e mais alguma coisa (só faltou a transformação do kasubody em indústria cultural) menos para o livro. Esclarecedor, não é?
Que autores cabo-verdianos recomendarias obrigatoriamente ao leitor moçambicano?
R: A leitura não deve ser uma obrigação, mas uma aventura. Dos vivos recomendaria o poeta Arménio Vieira e o ficcionista Mário Lúcio.
A companhia cabo-verdiana de dança contemporâ¬nea Raiz di Polon apresentou há meses na fundação Calouste Gulbenkian a parte musical da peça Coração de Lava, baseada na obra homónima da tua autoria. Para quando um documentário sobre ti? Está no horizonte?
R: Já pensei nisso. Teria de ser uma coisa «à branca de neve», do João césar monteiro, só com sons, sem imagens. Como apareço muitas vezes na pantalha, a única forma de provocar impacto seria por um esvaziamento da presença.
Lembrei-me agora de um projeto, com mais de uma década, de um realizador cabo-verdiano, o Mário Almeida, e que não avançou. Talvez seja altura de retomá-lo.
A Semana com Revista Colibri Noir (nº3, novembro 2023 – Moçambique)
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