Ezz El-Din Lulu sonhava ser médico e já estava no quinto ano de medicina quando começou a guerra na Faixa de Gaza, mas agora depara-se com o Hospital Al-Shifa, o maior no enclave palestiniano, destruído como os seus sonhos.
Era no Al-Shifa que Ezz estudava e esperava um dia trabalhar. Após a operação militar das forças israelitas dentro do complexo médico que durou duas semanas, o hospital ficou em ruínas. “Literalmente não temos futuro, Israel destruiu-o completamente”, diz Ezz num vídeo filmado após a retirada das forças israelitas.
Nas imagens, o edifício que outrora albergava grande parte das especialidades médicas disponíveis em Gaza, com capacidade para 800 camas, é agora um esqueleto queimado, esburacado por balas e tiros de tanques. No pátio e corredores exteriores onde as ambulâncias entravam e saíam desde 1946 vêm-se montes de escombros, que os médicos, enfermeiras e familiares das vítimas escalam com cuidado e luto, como que à procura de uma resposta. Alguns procuram os restos mortais de familiares desaparecidos.
As autoridades palestinas dizem que Israel matou 400 pessoas dentro e à volta do campus hospitalar durante as duas semanas de cerco, incluindo mulheres, crianças e médicos, para além de mais 350 pessoas que foram detidas, incluindo pacientes e profissionais de saúde.
No relatório publicado após o fim da operação, Israel diz que matou 200 militantes do Hamas, e que prendeu mais de 900 suspeitos de estarem ligados ao grupo, uma acusação rejeitada pelo Hamas.
O exército israelita diz que operou de forma “precisa” para eliminar membros do Hamas, encontrar armas e documentos, e prevenir danos a “civis, pacientes e equipas médicas”.
No entanto os testemunhos de sobreviventes e membros de organizações de ajuda humanitária revelam um cenário catastrófico. Vídeos publicados nas redes sociais filmados após a retirada dos israelitas mostram corpos em decomposição de mãos atadas atrás das costas ou esmagados por bulldozers.
Durante duas semanas, as forças israelitas cercaram o hospital, impedindo a entrada e saída de qualquer pessoa, e obrigaram as equipas médicas a levar todos os pacientes para a ala administrativa.
Ezz el-din estava dentro do hospital a trabalhar como voluntário aquando do ataque das forças israelitas. Durante o cerco, o estudante foi publicando vídeos nas redes sociais, a detalhar que tanto médicos como pacientes estavam sem acesso a água, comida ou eletricidade há vários dias, ao mesmo tempo impedidos de sair e ameaçados de serem bombardeados se ali ficassem.
A médica Amira Al-Safadi, também vítima do cerco, diz que o exército obrigou o staff a transferir os pacientes com tempo limitado e sob ameaça.
“Havia mais pacientes, mas morreram, estavam nos cuidados intensivos e não os conseguimos ajudar”, diz a médica que agora está noutro hospital a cuidar dos pacientes sobreviventes.
Israel diz que a operação foi um sucesso. As autoridades palestinianas acusam Israel de “crimes de guerra”. Pelo menos 21 pacientes morreram durante o cerco, de acordo com as Nações Unidas. A ONU está a planear uma missão especial para visitar o hospital, investigar o sucedido, e ajudar os feridos.
No entanto a ONU diz que após várias tentativas, os pedidos para avançar com a missão a Al-Shifa têm sido rejeitados.
Enquanto isso o hospital permanece um fantasma. Um centro médico de prestígio transformado no cemitério de que Ezz el-Din fala.
Mohammad Abu Mughaiseb, dos Médicos Sem Fronteiras (MSF), é médico em Gaza há mais de 24 anos. Muitos deles foram passados dentro do hospital Al-Shifa. Agora, diz à Lusa, o hospital já não está em funcionamento, e nunca mais vai estar.
“A descrição do que aconteceu em Shifa pode ser resumida a uma palavra: um terramoto. Destruição maciça”, diz à Lusa o médico através de mensagens de voz desde Rafah, no sul de Gaza. Por trás da sua voz, ouve-se o constante e grave zumbido dos drones israelitas.
“O departamento cirúrgico foi destruído, a maternidade foi destruída, a unidade de cuidados intensivos foi destruída, a unidade de queimados foi destruída, as urgências foram destruídas”, enumera o médico. Quanto ao staff, diz, a maioria foi detida, alguns algemados e despidos pelo exército israelita, e não há informação sobre o seu paradeiro.
“Também confirmamos que foram alvejados médicos perto ou à volta do hospital”, diz.
Antes do cerco ao hospital pelo menos 645 pessoas, incluindo profissionais de saúde, foram mortas e centenas foram feridas por ataques israelitas a centros médicos, segundo números das Nações Unidas de fevereiro. Mais de 350 bombardeamentos israelitas resultaram no encerramento de 27 dos 36 hospitais na Faixa de Gaza. A ONU também tem relatado ataques de atiradores furtivos na proximidade ou dentro de hospitais.
Os ataques israelitas a unidades de cuidados de saúde também aumentaram na Cisjordânia, onde o Hamas não opera: as Nações Unidas contam mais de 346 ataques a centros de saúde e 10 mortes.
Em janeiro, o Tribunal Internacional de Justiça considerou “plausível” que Israel esteja a cometer um genocídio contra a população palestiniana, após a África do Sul ter instaurado um processo contra Israel onde constam os casos dos ataques a unidades e profissionais de saúde.
Abu Mughaiseb mostra-se preocupado pelas consequências brutais da perda do hospital Al-Shifa na Faixa de Gaza a curto e longo prazo. Era ali que se encontravam a maior parte das especialidades médicas, incluindo cirurgia cardiovascular, diálise renal ou cirurgia pediátrica.
“Não consigo imaginar Gaza sem o hospital Shifa. Estamos muito preocupados sobre onde é que os pacientes irão… Há uma série de serviços médicos que os pacientes não vão encontrar e a taxa de mortalidade vai aumentar maciçamente”, diz à Lusa.
“Mais de 32,000 pessoas morreram, 70% das quais crianças e mulheres, os hospitais principais de Gaza foram destruídos, já não há lugares seguros, há pessoas a morrer à fome, a situação é catastrófica e está na hora de acabar a Guerra”, apela o médico. “Em Árabe: ‘Khalas’, basta!”
A Semana com Lusa
04 de abril 2024
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