As colónias foram valorizadas pelos recursos disponibilizados aos beneficiários da colonização, mas a História mostra as mudanças nesta relação, como David Martelo faz em ‘Da paz à guerra na Argélia – De Gaulle e a lição perdida por Spínola”.
O autor – coronel e historiador militar – expõe nesta sua obra, saída agora nas Edições Sílabo, os choques de interesses, as assimetrias de poder, a utilização e manipulação de grupos sociais, bem como as evoluções que por vezes levavam os atores a mudar de opinião, inclusive mesmo para a contrária.
Em cartas a Salazar, o embaixador português, Marcello Mathias, mostra isto. Em maio de 1956, escrevia que “a maioria da nação francesa quer bater-se”, porque tem consciência da “amputação mortal” que a perda da Argélia representaria, interrogando-se mesmo “como é que aguentará o seu alto nível de salários, quando tiver perdido esses mercados indispensáveis à sua produção e as matérias-primas que de lá recebia em regime privilegiado?” (pág. 32).
Mas, com a militarização do quotidiano argelino, “começa a criar-se [na sociedade francesa] a consciência da inutilidade do esforço” colonial, escrevia Mathias, no início de 1957, e a ter cada vez mais audiência “a convicção (…) de que a obra de colonização é um inútil sorvedoiro de capitais e esforços”.
A exceção aos espíritos dos tempos respeita às ‘Marie-Chantal’, “expressão coloquial francesa para designar a grande burguesia desligada das realidades sociais, económicas e culturais do país em que vive” (pág. 139), explica David Martelo, usada por De Gaulle para explicar o facto de os resultados do referendo em Paris sobre a autodeterminação argelina terem sido menos favoráveis do que no resto da França.
Certo é que a situação é apresentada, de forma brutal, pelo próprio De Gaulle, depois de o governo francês, em 21 de fevereiro de 1962, aprovar os termos do cessar-fogo com a FLN: “(...) é miraculoso que tenhamos chegado a este acordo. Porque, pensem bem, desde há cento e trinta anos que eles não deixaram de ser dominado, espoliados, humilhados” (pág. 171).
Mas antes, em 29 de março de 1961, de forma tão ou mais crua, De Gaulle, dirigindo-se ao governo, disse: “A era do Império chegou ao fim (…) este império forneceu-nos as riquezas e os soldados que tínhamos falta. (…) Não podemos, isolados do mundo, opor-nos à descolonização. De resto, deixámos de ter o mesmo interesse em ‘colonizar’. (…) já não necessitamos dos povos por nós submetidos (…). Já não estamos necessitados. Gastamos mais com a Argélia do que ela alguns vez nos restituirá” (págs 141-142). Continuar a colonização seria mesmo, previu, “uma ruína sem fundo” (pág. 163).
“Daqui a algum tempo, talvez reconheçam que o maior de todos os serviços que pude prestar ao país foi a separação da Argélia da França (…) este cancro nos iria ser fatal” (pág. 180) – antecipou.
E quanto ao outro lado, perdedor, da moeda francesa – os milicianos argelinos (‘harkis’) e os colonos (‘pés negros’) –, De Gaulle demonstrou ser impiedoso: “O destino da França não coincide necessariamente com os interesses dos franceses da Argélia” (pág. 175). Assim, entre 30 mil a cem mil ‘harkis’ foram executados no pós-independência [reconhecida pela França em 03 de julho de 1962] e meio milhão de colonos retornam à metrópole só nos dois meses anteriores à independência.
Para trás ficou também a tentativa de reduzir o território da Argélia independente à faixa litoral, o que manteria a França no deserto do Sara, onde tinha investido no petróleo e gás e tinha um centro para ensaios nucleares e bases para experiências espaciais (pás. 155).
A Semana com Lusa
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