ANÁLISE || "Esta é uma jogada muito interessante de Trump que se enquadra muito bem na sua prática de imprevisibilidade". A resposta de Xi é uma afronta a Trump, mas o convite para a tomada de posse continua a ser importante.
Imaginem a cena às 12:00 de 20 de janeiro de 2025 na frente oeste do Capitólio dos EUA.
Enquanto Donald Trump jura preservar, proteger e defender a Constituição no mesmo local onde os seus apoiantes se revoltaram há quatro anos, um convidado VIP extraordinário observa, ofuscando ex-presidentes, militares e membros do Congresso.
Agasalhado para afastar o frio do inverno está Xi Jinping, o líder da linha dura da China - o país que quase toda a gente na tribuna inaugural vê como uma ameaça existencial ao domínio da superpotência americana, à medida que a guerra fria do século XXI se acelera.
É uma imagem fantasiosa, porque mesmo antes de fontes terem confirmado, na quinta-feira, que Xi não vai participar na cerimónia, era óbvio que isso não podia acontecer, apesar do convite impressionante de Trump ao líder do Partido Comunista Chinês para uma segunda inauguração que ele espera transformar numa declaração global marcante.
Fazer com que Xi atravessasse o mundo de avião seria um golpe de génio para o Presidente eleito - um facto que faz do convite algo politicamente inviável para o líder chinês. Tal visita colocaria o Presidente chinês na posição de prestar homenagem a Trump e ao poderio americano - o que entraria em conflito com a sua visão da assunção pela China de um papel legítimo como potência mundial preeminente. Na cerimónia de tomada de posse, Xi seria forçado a sentar-se e a ouvir Trump sem ter qualquer controlo sobre o que o novo Presidente podia dizer e sem direito de resposta. A presença de Xi também seria vista como um apoio a uma transferência democrática de poder - um anátema para um autocrata num Estado de partido único obcecado por esmagar a expressão individual.
Ainda assim, mesmo sem uma resposta favorável, o convite de Trump a Xi marca um desenvolvimento significativo que lança luz sobre a confiança e a ambição do presidente eleito ao exercer o poder antes do seu segundo mandato. A equipa da CNN que cobre Trump informou que ele também tem perguntado a outros líderes mundiais se querem ir à tomada de posse - numa rutura com as convenções.
Isto recorda o gosto de Trump pela política externa através de grandes gestos e a sua vontade de atropelar os códigos diplomáticos com a sua abordagem imprevisível. O convite a Xi mostra também que Trump acredita que a força da sua personalidade pode, por si só, ser um fator decisivo para forjar avanços diplomáticos. Está longe de ser o único presidente a adotar esta abordagem - que raramente funciona, uma vez que os adversários hostis dos EUA fazem escolhas duras com base no interesse nacional e não em vibrações.
O convite do Presidente eleito a Xi é ainda mais interessante porque Trump passou as últimas semanas a formar uma equipa de política externa que é profundamente agressiva em relação à China - entre esses exemplos estão a escolha do senador da Florida, Marco Rubio, para uma das secretarias de Estado (que nos EUA são o equivalente a ministérios em Portugal) e do deputado da Florida Mike Waltz para conselheiro de segurança nacional, que veem a China como uma ameaça multifacetada para os Estados Unidos ao nível económico, em alto mar e até no Espaço.
“Esta é uma jogada muito interessante de Trump que se enquadra muito bem na sua prática de imprevisibilidade. Acho que ninguém esperava isto”, diz Lily McElwee, diretora-adjunta e membro da Cátedra Freeman de Estudos sobre a China no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais. Lily McElwee considera que o convite deve ser visto no contexto de varas e cenouras que o Presidente eleito está a usar enquanto se prepara para assumir a relação diplomática mais importante do mundo. “Esta é uma cenoura muito, muito barata. É uma cenoura simbólica - perturba um pouco o tom da relação de uma forma que certamente não prejudica os interesses dos EUA.”
A aproximação de Trump a Xi surge no momento em que aumentam as expectativas de que as tensas relações entre os EUA e a China se agravem ainda mais na próxima Administração, com funcionários determinados a desenvolver uma linha já dura adotada pela administração Biden, que se baseou num endurecimento da política durante o primeiro mandato de Trump.
EUA e China estão em desacordo sobre Taiwan, uma ilha democrática que Pequim considera parte do seu território e que os estado-unidenses podem ou não defender se Xi ordenar uma invasão. A China está a aumentar a sua cooperação com outros inimigos dos EUA num eixo informal antiocidental, juntamente com a Rússia, a Coreia do Norte e o Irão. As forças aéreas e navais das duas principais potências do Pacífico aproximam-se muitas vezes perigosamente de confrontos nos mares do Sul e no Leste da China. Os legisladores de ambos os partidos acusam a China de roubar segredos económicos e militares dos EUA e de não respeitar o direito internacional e as regras comerciais.
Uma vez que Trump já ameaçou impor tarifas esmagadoras à China, a sua tentativa de persuadir Xi a ir a Washington parece uma enorme contradição. E levanta a seguinte questão, numa altura em que os governos estrangeiros se interrogam sobre como lidar com o novo Presidente dos EUA: até que ponto os aliados e adversários dos EUA devem levar a sério o seu tom intimidatório e as suas políticas voláteis? Será que a verdadeira abordagem americana é caracterizada pelos seus funcionários e políticas de linha dura ou será mais corretamente representada pelos movimentos de cabeça do Presidente eleito, que revelam um zelo por acordos e por se sentar à mesa das negociações com os líderes mais duros do mundo?
A primeira grande jogada de Trump nas relações com a China
Esta jogada de Trump pode parecer caótica - mas isso não significa que não possa resultar.
Apesar de os críticos de Trump condenarem frequentemente a sua imprevisibilidade, as suas ações improvisadas podem desequilibrar os rivais e abrir potenciais vantagens para os EUA. Por exemplo, qualquer sucesso que Trump tenha em afastar Xi do Irão, da Rússia e da Coreia do Norte seria uma enorme vitória em termos de política externa, apesar de outras divergências dos EUA com a China.
Mas, ao mesmo tempo, é justo questionar se o fogo e a fúria da política externa do seu primeiro mandato produziram resultados duradouros.
As opiniões de Trump sobre a China são especialmente confusas - uma vez que parece acreditar que as políticas mercantilistas de Pequim são uma ameaça direta aos EUA e que a China tem vindo a roubar os Estados Unidos há décadas. Mas continua a querer ser amigo de Xi. Durante a campanha, Trump sublinhou repetidamente que Xi era duro e inteligente e que eram amigos - parecendo acreditar que a sua cordialidade significa que o líder chinês pode ter uma opinião semelhante sobre Trump.
Trump expressou esta contradição numa única frase, numa entrevista a Jim Cramer, na CNBC, esta quinta-feira. “Temos falado e discutido com o Presidente Xi algumas coisas e falado e discutido outras com outros líderes mundiais. Penso que nos vamos sair muito bem.” Mas acrescentou: “Fomos maltratados enquanto país. Temos sido muito maltratados do ponto de vista económico.”
O hábito de Trump de minar a política dura da sua administração foi repetidamente evidente no seu primeiro mandato, especialmente com homens fortes como Xi, Vladimir Putin, Recep Tayyip Erdogan e Kim Jong Un. Por vezes, parecia que Trump tomava posições simplesmente porque toda a gente lhe dizia para não o fazer.
Um dos antigos conselheiros de segurança nacional de Trump, H.R. McMaster, escreve no seu livro “At War with Ourselves” que esta situação era especialmente acentuada com Putin. “Tal como os seus antecessores George W. Bush e Barack Obama, Trump estava demasiado confiante na sua capacidade de melhorar as relações com o ditador do Kremlin. Trump, que se autodenomina 'especialista em negociações', acreditava que podia construir uma relação pessoal com Putin. O facto de a maioria dos especialistas em política externa em Washington defenderem uma abordagem dura ao Kremlin parecia apenas levar o Presidente a adotar a abordagem oposta.”
O Presidente eleito pode estar agora a prever um novo acordo comercial com Pequim, mesmo que um pacto bilateral no primeiro mandato tenha sido um fracasso. O acordo comercial que Trump concluiu no final de 2019, saudado como “histórico”, nunca se concretizou. Embora Trump se tenha voltado fortemente contra Xi meses depois por causa da pandemia de covid-19 - que começou na cidade chinesa de Wuhan -, nunca ficou claro que Xi pretendia implementar totalmente o que Trump alegou ser uma mudança estrutural económica em grande escala e compras maciças de produtos agrícolas, energéticos e manufaturados dos EUA. Não há indícios de que Xi tenha mudado de ideias.
A estratégia tarifária de Trump também está em causa porque ninguém sabe se um Presidente relutante em prejudicar a sua base está disposto a pagar o preço político que tal abordagem implicaria. Apesar da insistência de Trump em que os direitos aduaneiros acabariam por custar milhares de milhões a Pequim, os preços mais elevados das importações seriam transferidos pelos retalhistas americanos para os consumidores - incluindo os eleitores que viam Trump como a melhor esperança para aliviar a inflação.
Outra questão: Trump vê as tarifas como uma tática de negociação ou como um verdadeiro ato de guerra económica? Muitos analistas pensam que as suas ameaças contra aliados como o Canadá ou a União Europeia destinam-se simplesmente a melhorar a sua posição negocial. Mas a antipatia de Washington pela China é tal que as guerras comerciais com Pequim podem ser mais duradouras e constituir um fim em si mesmas.
“Em relação à China, ainda temos dúvidas sobre se as ameaças tarifárias têm como objetivo servir de alavanca de negociação para um acordo ou se visam uma espécie de dissociação unilateral das economias dos EUA e da China”, aponta Lily McElwee, diretora-adjunta e membro da Cátedra Freeman de Estudos sobre a China no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais.
Pequim parece estar a levar Trump a sério. Passou as semanas desde a eleição a preparar ferramentas de retaliação. Na quarta-feira, anunciou uma investigação antitrust contra a Nvidia, fabricante de chips sediada nos EUA. Noutra frente da guerra tecnológica, a China proibiu a exportação de vários minerais raros para os Estados Unidos. E, esta quinta-feira, prometeu aumentar o défice orçamental, pedir mais dinheiro emprestado e afrouxar a política monetária para salvaguardar o crescimento económico como escudo contra novas tensões com Trump.
Isto mostra que uma guerra comercial pode ser desastrosa tanto para a China como para os Estados Unidos. Embora os direitos aduaneiros possam fazer subir os preços nos EUA, podem secar os lucros e exacerbar algumas das maiores vulnerabilidades económicas da China, incluindo a sobrecapacidade industrial e a baixa procura das famílias.
Assim, a abordagem pouco ortodoxa de Trump pode estar a começar a concentrar as atenções de Pequim.
Nesta perspetiva, o convite inaugural de Trump parece ser uma jogada de xadrez de abertura num grande jogo pan-pacífico que ajudará a definir o seu segundo mandato.
A Semana com CNN Portugal
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