Uma serpente enrola-me ao pescoço. É macia, mas treinada para atacar. Está imóvel no galho dos meus ombros. A princípio, para me testar, impa o ventre quente e ameaça me sugar. A víbora pertence a uma satânica e radical corrente de pensamento. Tem uma obsessão doentia e maliciosa por adverso lado oposto, que despreza e assim sustenta - «Os miseráveis da vossa laia berram bué e aprontam um discurso distorcido, de tanga e de calcinha. Fingem sobretudo nutrir um danado ódio pelo dinheiro. Além disso, são fantasiosos e pouco práticos. Almejam a igualdade com cinismo e vã falácia». Fico atordoado e ela ríspida dispara - «Oh pária das catacumbas! Eu nem devia tocar em ti, sob pena de me passares a borra do teu azar. Porra! Quero eu lá saber de ideologia? Não, preciso é de destreza nos negócios, enfoque na fortuna e fama colossal. Para já, tira-me daqui, estupor de merda!». A cobra está aluada e é um tanto parvalhona. Algo cretina, descontrolada e rude.
Domingos Landim de Barros*
Estou embasbacado com tamanha virulência da minha hóspede furtuita e ouso dar-lhe troco – «Bem, não tenho culpa de estares no sopé da minha nuca e acoplada ao meu pescoço. Eu não te convidei e nunca te quis à volta do meu radar. Solta-te daqui sua bruxa azeda e descarada usurpadora!». A azafamada parasita, estando atingida com desconchavo e no vazio da sua bazófia, exibe um cabisbaixo, não reage. Então, para trazê-la a meu contendo, resolvo entoar-lhe os versos acrílicos e humanos da minha lavra. A insipiente criatura começa a sibilar, numa pose esquiva e desconfiada. Depois, à medida que lhe ostento as proezas sonoras do meu jardim, a louca deixa de ser raivosa e assaz grosseira. Torna-se mole, catita e serenada. Apenas pelo friso da lingueta de niquices desata a saudar e a fazer-me cócegas de brinde. Sempre a inclinar-se para o seu predileto lado extremo. De seguida, já amistosos, decide agraciar-me com momices e carícias. Baixa a coma, assume-se quieta e quase flácida de brio. Está domada e francamente hipnotizada.
A ofídia desativa de si o instinto de malquerença e predação. Desiste de me picar, de motu próprio. O susto inicial é para esquecer, digo num claro tom de desafogo. Entretanto, acontece um outro intrincado contratempo ao meu redor. Sai-me de dentro da algibeira uma cartola. É mística e fogosa, cintilante tal que candelabro de Monte Tchota. Tresanda-me a provação do Ser do alto. Transmuta-me, num ápice de instante, em Sousa de Zebedeu. Estou na soleira da caverna de Rachado, homizio do empolgado e supradito nigromante, em virente Ribeireta. Ah fenda do mirone de ladeira até Enseada! Agora, de incensado poder na mente, para mudar o curso de história da minha gente e resguardá-la do alcance de hedonistas e sibaritas, os da espécie da espúria e esguia categoria da minha bimba interlocutora, dou um brado de radiante regozijo.
Passa-me pelas ventas do nariz o faro de vidência. A mainata de serpente já nem liga. Mui afeita ao meu poisio, não dá mostras de agressão. A cartola vira lâmina de espuma. E a espuma vira pluma de borboleta. Sinto-me a vibrar e a palpitar, embora não da nitente visão de pequenos nadas, da estirpe do brioso Garcia Marques, ganho aura de entusiasmo na lívida odisseia. Elevo-me das trevas e sou asas de magia. Ponho-me a vagar na leveza das nuvens. Tenho exíguo tempo para viver. Ainda assim com peso na consciência e sonhos de sobejo para cumprir. Apresso-me bastante. Um tanto agitado, anseio endireitar o que de torto na minha ambiência. Imagino-me a participar de uma merecida homenagem a prestar pela edilidade da minha origem ao prolífero poeta, Vadinho Velhinho, em Arquétipo dos Anjos. De facto, o vulto Valentinous é o primeiro oficiante a sério de São Miguel.
Numa outra guinada de rebuscada gentilidade, para escorreitar coisas tediosas e defeituosas do meu rincão, intuo uma gesta de igual quilate, em prol do destemido e deslumbrante criador, Kauberdiano Dambará e do seu leal confrade de caminhada, Kaká Barbosa, em Santa de Novembro. Ando com saudades do Frank Mimita e do meu então compincha de labor, Zequinha de Bulimundo. Cogito e diviso logo a discrepância de proceder desta sórdida metrópole. Por isso, vivamente dou um pupo: caramba! Nunca foram celebrados, com pompa e circunstância, por minha falsa, mas bonita urbe de preito. Que lancinante ingratidão! Imagino, concomitantemente, uma espécie de sarau cultural a oferecer por município da cidade de Monte Efígie, com a presença de exímios trovadores da morna e coladeira, de agradável melodia, como Albertino Évora, Dudu Araújo e Lucibela, por exemplo. Tudo em memória do ilustre vate-mor, Osvaldo Osório.
Na mesma senda de lucidez e leva de coerente espirituosa reflexão, para corrigir o que está mal e não me estragar a alma de agradecido, enxergo a contribuição do Bonga Kwenda a favor da cultura do meu país. Alcanço também as genuínas amizades do radioso Waldemar de M’banza Congo, com relação a este povo do meio do mar. Então, envio uma trémula e mirífica missiva ao Ministério da Cultura do meu torrão, a suplicar por um reajuste de calendário, com o fito de atribuir um justo reconhecimento aos dois astros predecessores da desenvolta música angolana da hodiernidade. E junto a uma cascata da minha herdade, com refulgente e mui benzida água do Bengo, num amplo espaço de dileção, uma estátua de Aniceto Vieira Dias, o estroso combatente cultural da minha esfera. Ao lado, uma outra para o renomado João Seria de São Tomé. E uma terceira para o meu vizinho e meio irmão, José Carlos Schwartz. Enfim, estou na tênue espessura dos ares e há muito para acertar, com esta nova visão de seara da minha parte. Foi assim que tive sonho.
*Na pele de Sísifo Ali Jó
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