O jurista guineense Fodé Mané lamentou que a Guiné-Bissau tenha caído no pior dos dois cenários previstos por Amílcar Cabral, com a pequena burguesia que subiu ao poder focada nos seus interesses, traindo os ideais da revolução.
Em entrevista à Lusa, o defensor dos direitos humanos considerou que “muita coisa do sonho de Cabral”, cujo centenário se assinala na próxima quinta-feira, dia 12 de setembro, ficou por cumprir.
Cabral tinha previsto dois cenários e disse “depois da independência, será a pequena burguesia a conduzir [o país], mas [terá] de se ‘suicidar’ (…), deixar os seus interesses de classe [para] termos o desenvolvimento, o progresso, [pois] se mantiver as suas aspirações, os seus interesses (…), os ideais da revolução vão ser traídos. É o que nós vimos hoje (…), principalmente desde 1998, depois da guerra civil”, declarou.
Passados 50 anos da independência da Guiné-Bissau, declarada unilateralmente em 24 de setembro de 1973 e a primeira a ser reconhecida por Portugal em 10 de setembro de 1974, na sequência da Revolução de Abril, o professor de Direito na Faculdade de Direito de Bissau e investigador sénior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa acredita que o “sistema vai desmoronar”.
“Já está a desmoronar, quer queiramos ou não. Um dia vamos ser arrastados pela dinâmica mundial, porque seremos obrigados a criar boas escolas, seremos obrigados a criar empresas e as empresas vão precisar de recursos e o próprio Estado vai-se transformar num verdadeiro Estado de Direito”, afirmou, dando como exemplo que o fim do esclavagismo decorreu de “uma dinâmica mundial”.
O fim da “colonização também foi uma dinâmica”, na qual se incluiu o 25 de Abril, e, “depois, entrou-se pelos regimes monopartidários de ditadura”, até que “houve pressão da evolução mundial”, que obrigou “a realizar eleições, a respeitar os direitos humanos”, acrescentou.
“Houve retrocessos, mas as pessoas já sabem o que é bom. Por isso, eu perspetivo que as coisas vão mudar”, frisou.
Para Fodé Mané, é essencial apostar na formação da juventude guineense, área em que o país continua a falhar.
“A juventude foi traída sem se notar. Há muitas escolas de formação que não têm nada, dão apenas certificado de diploma. Então, quando a juventude não está bem formada, não tem uma visão, não tem conhecimento, não pode servir de alimento transformador”, salientou.
Por outro lado, os que conseguem uma boa formação e têm princípios “veem aqueles que estão próximos dos políticos a terem carros, podendo viajar para a Europa quando querem (…), [e] acabam por desistir das suas ideologias”, lamentou.
Sobre a relação com Portugal, Fodé Mané citou Cabral para sublinhar que “a luta não era contra o povo português, era contra o sistema de que o próprio povo português também era vítima”.
“Isso abriu portas para que haja um entendimento (…). O destino nos fez cruzar, somos inseparáveis”, disse, exemplificando com a preferência dos jovens guineenses por Portugal quando se coloca a questão de emigrar.
Distinguindo da relação de França com as suas antigas colónias, que definiu como mais impositiva, nomeadamente nos modelos de governação, o jurista lamentou que a postura de não interferência de Portugal tenha sido quebrada com a “proximidade” do Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, e do ex-primeiro-ministro António Costa e do ex-ministro da Defesa e depois dos Negócios Estrangeiros João Gomes Cravinho ao chefe de Estado guineense, Umaro Sissoco Embaló.
“Não fica bem estar a avalizar uma pessoa que não respeita as leis (…), cria uma deceção”, disse, lembrando a forma como são desrespeitados os resultados das eleições e a persistência de “um regime que não tem sensibilidade em relação à questão das liberdades e dos direitos humanos”.
Fodé Mané salientou os laços culturais que unem os dois povos, fazendo questão de sublinhar, enquanto jurista, que a legislação do seu país segue a legislação portuguesa e, ainda hoje, as leis do tempo colonial que não contrariavam a Constituição guineense continuam em vigor.
“Houve uma tentativa de mudar o sistema, de adotar o sistema francófono - quase todos os países francófonos são presidencialistas -, mas há muita resistência da população. (…) Temos no sistema português a maior referência”, concluiu.
A Semana com Lusa
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