O ex-Presidente cabo-verdiano Jorge Carlos Fonseca considera prioritário explicar a democracia à população cabo-verdiana, para travar investidas autocráticas, 50 anos após a independência.
“Na minha visão, um grande maioria dos cabo-verdianos, quando pensa no PAICV, vê a representação da ideia da independência, da soberania, de o país ter o seu destino nas próprias mãos, como se dizia em 1975. E para essa grande maioria dos cabo-verdianos, o MpD significa a liberdade e democracia. É como se fossem dois blocos que se revezam, confrontam e por vezes entram numa espécie de picardia política. Isto influencia e condiciona o desenvolvimento político em Cabo Verde”, diz Jorge Carlos Fonseca.
“Além das investidas autocráticas no plano internacional, também aqui, internamente, em Cabo Verde, temos de estar atentos. Vejo ultimamente algo que não acontecia, vemos pessoas com à vontade, com ligeireza, a defender, por exemplo, regimes militares”, refere, em entrevista à Lusa, numa alusão a publicações nas redes sociais.
Mali, Níger e Burkina Faso são países que vivem sob regimes militares após golpes de estado, desde 2021, e que este ano abandonaram a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO, de que Cabo Verde faz parte) para se associarem entre si na Aliança dos Estados do Sahel.
“Espero que sejam segmentos minoritários, mas vejo pessoas a apregoar, a publicar fotos de coronéis ou capitães que dão golpes de Estado como uma espécie de referência ou modelos para superar as dificuldades que temos”, aponta Jorge Carlos Fonseca.
“Isso é um perigo, uma ameaça a que temos de estar atentos”, acrescenta, numa entrevista a propósito dos 50 anos de independência.
Segundo refere, é preciso fazer “a pedagogia da democracia, demonstrar que essas soluções, esse tipo de facilitismos – ‘dá-se um golpe e resolvemos problemas, suprimimos o parlamento que tem deputados a mais’ – são discursos perigosos”, cujo objetivo final é “pôr em causa a democracia participativa”.
Jorge Carlos Fonseca anunciou, em março, a iniciativa Liberdade e Democracia para aprofundar estes valores, em Cabo Verde, algo que diz já ter sido uma das suas bandeiras enquanto chefe de Estado, entre 2011 e 2021.
Segundo diz, a cultura democrática no arquipélago “ainda não é a desejável, precisa de se consolidar e resistir a eventuais investidas ou ataques para que não haja retrocessos”.
“Às vezes, eu próprio fico surpreendido com o desempenho da democracia cabo-verdiana que nos é indicada pelos observadores estrangeiros”, conta, acrescentando que costuma fazer um contraponto: “tenham calma aí, temos feito coisas positivas, mas não estamos no firmamento, onde nos querem colocar”.
“Devemos ser mais ambiciosos” e “trabalhar mais”, num país onde há dois partidos no arco do poder, Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV, atual oposição) e Movimento pela Democracia (MpD, no poder desde 2016).
Cabo Verde “é um só” e os cabo-verdianos formam “uma unidade”, mas, “politicamente, o país parece divido a meio”, acrescenta.
“Na minha visão, um grande maioria dos cabo-verdianos, quando pensa no PAICV, vê a representação da ideia da independência, da soberania, de o país ter o seu destino nas próprias mãos, como se dizia em 1975. E para essa grande maioria dos cabo-verdianos, o MpD significa a liberdade e democracia. É como se fossem dois blocos que se revezam, confrontam e por vezes entram numa espécie de picardia política. Isto influencia e condiciona o desenvolvimento político em Cabo Verde”, diz Jorge Carlos Fonseca.
“Tem de haver desenvolvimento em setores chave, por exemplo, na Educação: já fizemos muita coisa, sobretudo na democratização do acesso, mas isso gerou, talvez, deficiências ao nível da qualificação dos professores, da qualidade do ensino” que, defende, deve ser a próxima batalha do país.
É um setor em que “tem de haver coragem política para [se concretizar] uma reforma profunda”, para haver “quadros que permitam [ao país] dar um salto em termos de desenvolvimento”.
Ao mesmo tempo, é preciso dinamizar o espírito crítico.
“Não gostamos muito de confrontar os outros, criticamente, porque depois nos encontramos todos nos cafés ou restaurantes. Se fizer uma crítica literária” e disser que uma obra não é boa, “depois vou encontrar” esse autor.
São reflexões sobre um país bem diferente de há 50 anos.
O antigo presidente cabo-verdiano desvia o olhar para uma mesa de apoio, no gabinete e pega numa fotografia do Dia da Independência: lá está ele, um jovem entre outros, cabo-verdianos, na zona de Boston, nos Estado Unidos, erguendo uma bandeira da nova nação ao ar livre.
“Era um sonho”, vivido com o “entusiasmo de quem, desde jovem, esteve envolvido na luta clandestina pela independência”, mas era também um momento em se colocavam várias questões: “será uma utopia? Como será”, perguntava.
Passados 50 anos, o país é motivo de orgulho, diz Jorge Carlos Fonseca, “não tem nada a ver com 1974”, mas Cabo Verde, “provavelmente, teve e tem condições para estar num nível bem superior, devia ser mais desenvolvido do que é, a todos níveis”.
“Teremos de ter uma ambição muito grande”, para que todos tenham “mais qualidade de vida”, por exemplo, comparando com o que outros países parecidos com Cabo Verde conseguiram, disse, apontando para alguns indicadores como o PIB ‘per capita’ de ilhas como Maurícias ou Seychelles: “mas não creio que em termos de desenvolvimento político e democrático estejam acima”.
Agora, segundo Jorge Carlos Fonseca, “interessa fazer o caminho para o futuro”, sem impedir “que as pessoas opinem e escrevam” sobre a história de Cabo Verde.
“Há quem defenda que os responsáveis pelo partido único [o PAIGC, na altura da independência] deviam pedir desculpas públicas ao país. Eu entendo que o fundamental não é a formalidade dos pedidos. Isso pode não representar grande coisa. O fundamental é que as pessoas reconheçam o que foi a história do país”, concluiu.
A Semana com Lusa
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