O compositor e ex-ministro Manuel Faustino, 77 anos, considera que a música deveria continuar a ser uma forma privilegiada de intervenção política, tal como os seus temas que acompanharam a independência de Cabo Verde.
Olhando o seu percurso peculiar, em que espontaneamente descobriu na música a sua forma inicial de expressão política, acha que, ainda hoje, “talvez” devesse haver mais políticos a cantar do que a discursar.
“Talvez, porque a música é mais autêntica. Se é boa, fica, se é ruim, descarta-se. Mas o discurso político, muitas vezes, é enganoso” e chega a ser repetido em cerimónias, comícios, “e sem querer, lá se batem palmas” – mas ninguém ouve música de que não gosta, argumenta.
No caso de Manuel Faustino, foi o choque com o racismo, ao chegar a Portugal, que lhe despertou a consciência política: tinha 17 anos quando chegou a Coimbra, em 1965, para estudar Medicina.
Dono de uma “autoconfiança incrível”, pelo sucesso de ter partido da ilha de São Vicente e conseguir ali chegar, rapidamente embateu com uma realidade que o surpreendeu: começou a ouvir insultos racistas como parte de um discurso normalizado, a par de atos de desprezo no trato diário.
“És reduzido a nada. Tinha começado a Guerra Colonial, em 61, e havia um exacerbar da raiva, dos insultos na rua. Para mim, era uma violência terrível”, descreve.
“Claro, havia quem fosse contra e era solidário, principalmente na universidade”, atenuando o que classifica como “uma vivência terrível, nos primeiros tempos, não por ter feito alguma coisa, mas só por ser quem era”.
O contexto levou-o a encarar a política “como uma atividade global, em que é preciso estar de corpo inteiro”, alinhado com princípios e causas.
“Tentava convencer quem ainda não estava convencido da necessidade de independência, tentando mobilizá-los pela palavra” e, de uma forma espontânea, começou a escrever letras e a compor músicas.
“Não era filho de um grande músico, nem irmão de artistas, mas vivia num meio muito musical, em São Vicente, e isso penetrava em mim, ainda que não tivesse consciência disso”, diz.
A determinada altura, escreveu uma exortação contra o alistamento para a guerra colonial, “Ka bô bai (Não vás)", cantada em encontros, e assim começava uma carreira que havia de deixar marcas na música de intervenção de Cabo Verde.
“Devo ter gostado, porque a reação das pessoas não foi ruim, animei-me, fui fazendo e achando interessante. Ainda hoje não me libertei” do encanto da criação musical.
Eram músicas para dançar, mas as letras e composições revelavam a luta e protesto como em “Nhô Keitone” ou eram o retrato de árduas condições de vida, como em “Serafim”, história do quotidiano de um jovem e de um estivador de São Vicente.
Pela voz de Nhô Balta, os seus temas surgiam em cassetes ou discos, mas sem indicação dos seus autores até depois do 25 de Abril e da independência, como nas edições cantadas por Ildo Lobo, já com referência a Manuel Faustino.
Hoje, quando volta a assistir a violência racista, o compositor a antigo ministro de há 50 anos pensa na ameaça que essa intolerância representa para todos – não só para as vítimas do momento, mas para as futuras, dizendo que ninguém escapará, se o ódio não for travado.
Face à polarização do mundo, é preciso intervir, por exemplo, cantando, “antes que um dia chegue a mim” - ou seja, os ciclos (políticos, sociais) mudam e ninguém está a salvo de assaltos à dignidade.
“Os anos ajudaram a estudar estas questões, aprendi a lidar com elas. Mas, naturalmente, incomoda-me, impele-me a juntar-me com outros para as barrar, porque acaba por ser contra toda a gente”, diz.
“Hoje é contra o imigrante, o negro, o comunista, o homossexual, enfim, é contra aquele que é diferente, mas um dia isso vai chegar a mim, seja branco ou não”, conclui.
E as respostas que ainda prevalecem começaram a ser escritas há mais de 50 anos nos temas de Manuel Faustino e outros.
O autor acabaria por receber a pasta de ministro da Educação e Cultura no executivo de transição, nos meses que antecederam a declaração de independência, em 05 de julho de 1975, passando a ministro da Saúde depois do 05 de julho.
No final da década de 1970, Manuel Faustino afastou-se do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), rumou ao Brasil, onde se especializou em Psiquiatria, voltando a Cabo Verde na abertura multipartidária dos anos 90, integrando como independente o Governo do Movimento pela Democracia (MpD), com a pasta da Educação (1991-94).
Em 2011, com a eleição de Jorge Carlos Fonseca, chefiou a Casa Civil da Presidência da República, período durante o qual também lançou o movimento Menos Álcool, Mais Vida, que ainda hoje dinamiza, além de continuar a sua atividade como psiquiatra no estabelecimento prisional da cidade da Praia e como profissional liberal.
A Semana com Lusa
Entre ganza e pó: a política já não canta, estrebucha
Mesmo sem ser músico, confesso: umas boas fumadas de maconha ou haxixe até inspiram umas rimas decentes. A criatividade flui, os acordes aparecem do nada e a letra encaixa que nem luva... Agora, hoje em dia, a malta da música já não se contenta com um charro de camarão — é logo cocaína a balde, cheirada com a força de um cavalo a subir o Monte Verde. Depois admiram-se que os álbuns só tenham uma faixa e que ninguém acabe a digressão sem surto psicótico ou falência hepática.E pensar que nos anos 70, bastava um cavaquinho, um copo de grogue e uma letra contra a guerra — hoje é estúdio, autotune e farra farmacêutica. Políticos a cantar? Só se for para ver se afinam a consciência, porque o resto já desafinam há décadas.
Meu caro Manuel Faustino me desculpe, mas hoje a intervenção política via música tem que competir com TikTok, beats de IA e letras que parecem listas de compras. Só com um bom ganza vibe é que ainda se faz arte com alma.
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