O projeto Noz Stória pretende contar as “histórias da presença negra nos bairros autoconstruídos” nos arredores de Lisboa “honrando a memória dos seus moradores” através de caminhadas que dão a conhecer as tradições e a resiliência das comunidades.
É preciso também ouvir as associações que estão no terreno, que podem e são uma grande força e que podem ser um parceiro para acompanhar situações que eles não conhecem e com que não têm sensibilidade ou empatia. [A sociedade] exclui essas comunidades e usa-as como bode expiatório do que vai acontecendo”, sublinhou.
José - Sinho - Baessa de Pina, filho do Bairro das Fontainhas, outrora localizado por detrás das Portas de Benfica, na fronteira entre os concelhos de Lisboa e Amadora, é o dinamizador do Noz Stória (Nossa História, em português), que leva os participantes a conhecer a história das comunidades africanas estabelecidas em Portugal à procura de melhores condições de vida.
“O objetivo é um resgate e partilha de memórias, por tributo aos mais velhos. Quando nos mudámos para o Casal da Boba, em 2005 [depois da demolição do bairro para a construção da CRIL – Circular Regional Interna de Lisboa] achei que se tinha de conhecer esta comunidade que foi muito rica, muito resiliente”, começou por explicar.
O dinamizador cultural lembrou que foram estas comunidades, não só das Fontainhas, mas também do Bairro 6 de Maio e do Estrela d’África, no concelho da Amadora, que ajudaram a desenvolver o país, com os trabalhadores da construção civil, padeiros, peixeiras, “a classe trabalhadora que morava nos bairros autoconstruídos e que tinha vindo de São Tomé [e Príncipe] e Cabo Verde”, na sua maioria.
“Depois do 25 de Abril muitas pessoas regressaram a Portugal e ocuparam casas, mas a nossa comunidade fez os bairros, também com pessoas que vieram do Norte e do Alentejo. Com madeira e chapa ergueram casas”, contou, sublinhando que são estas vivências que quer contar nas caminhadas.
Sinho, dirigente da Associação Cavaleiros de São Brás, quer também explicar o que sentiam as crianças na altura em que era mais novo, porque muitas vezes as mães “estavam fora a trabalhar e a cuidar de outras casas e de outras crianças como domésticas”, enquanto os filhos estavam entregues a familiares ou ao Centro Social 6 de Maio.
“A gente não conhece África da mesma forma que os nossos pais. Com 47 anos, vou atrás das memórias e vejo que tenho de prestar uma homenagem à comunidade, e fazer uma denúncia de uma ausência de Estado de cinco décadas e que se reflete nos dias de hoje”, explicou, aludindo aos acontecimentos na Área Metropolitana de Lisboa na última semana, na sequência da morte do cabo-verdiano Odair Moniz, baleado pela polícia na Amadora.
“É tudo um reflexo de 50 anos de falta de políticas públicas e sociais. Muitos jovens foram presos e [as pessoas] não sabem o contexto de abandono em que viveram. Foram privadas, enquanto crianças, de direitos”, lamentou.
Na sua perspetiva, parte da solução para mais direitos destas comunidades passa pela criação de uma política pública a nível nacional, já que o facto de cada câmara municipal usar os regulamentos “que quer e à sua maneira para isolar os bairros" não ajuda.
“É preciso também ouvir as associações que estão no terreno, que podem e são uma grande força e que podem ser um parceiro para acompanhar situações que eles não conhecem e com que não têm sensibilidade ou empatia. [A sociedade] exclui essas comunidades e usa-as como bode expiatório do que vai acontecendo”, sublinhou.
A caminhada do próximo sábado tem início nos Castelos da Venda Nova, nas Portas de Benfica, seguindo depois pelos bairros 6 de Maio, Estrela d’África, Damaia de Cima, e terminando na Cova da Moura, no espaço Bazofo Dentu Zona, para uma reflexão.
Segundo Sinho, o projeto tem chegado a todo o género de pessoas e de várias geografias, não só de Portugal, o que o tem surpreendido. Já fez passeios com académicos, estudantes, engenheiros, e até orientou seminários, um dos quais para oito professores de Trinidad e Tobago.
“O importante é que as histórias do bairro cheguem a todos, mas sobretudo para as nossas crianças verem como era o bairro das Fontainhas e a sua importância”, salientou.
A Semana com Lusa
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