domingo, 15 junho 2025

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EUA: Donald Trump e a Alma do Tirano

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Donald Trump sem “-ismos”  

As iniciativas políticas de Donald Trump neste primeiro trimestre do seu segundo mandato, entre as quais se destacam: (i) a amnistia da turba enlouquecida que tomou de assalto o Capitólio a 6 de Janeiro de 2021; (ii) a promessa  de deportação em massa de 11 milhões de imigrantes indocumentados; (iii) o assédio a e a humilhação de dezenas de milhares de funcionários da administração pública norte-americana; (iv) o vexame sádico de Volodymyr Zelensky perante as câmaras de televisão de todo o mundo na Sala Oval, impondo ao Presidente ucraniano um acordo de paz negociado directamente pela Casa Branca junto do Kremlin (“Eu diria que este vai ser um grande momento de televisão…”, rejubilou então o homem de Mar-a-Lago) e, last but not least; (v) as persistentes ameaças de anexação do Panamá, da Gronelândia e do Canadá, fazem emergir um problema incontornável: como caracterizar, em termos razoavelmente científicos e já não meramente ideológicos, o modo como Donald Trump exerce o poder que os cidadãos americanos lhe confiaram nas eleições presidenciais de Novembro de 2024?

 

Chamemos os bois pelos nomes. Trump, pois, e a tirania.

 

Antes de passarmos à descrição propriamente dita do exercício do poder tirânico, revisitando o que deste disse Platão, vejamos primeiro, embora de modo esquemático e apenas de passagem, o emprego pouco rigoroso das noções de totalitarismo e populismo quando aplicadas, sem mais, a Donald Trump. (A análise da parca e desajustada serventia dos termos autoritarismo e fascismo terá de esperar por outra ocasião.)

 

Um sinal risível do que acabo de dizer é o entendimento que o próprio Donald Trump faz deste “ismo”. Segundo Bob Woodward, quando Steve Bannon explicou a Trump em que consistia a promessa política do populismo, Trump mostrou-se encantado com a descrição do “ismo” feita pelo seu spin doctor e respondeu a Bannon: «Adoro isso. É o que eu sou, um popularista». «Não, não», atalha Bannon: «Diz-se populista». «Sim, sim, um popularista», insistiu Trump, completamente indiferente às bizantinices terminológicas do seu então chefe de campanha. Do modo mais prosaico possível, e num espontâneo xeque-mate à carga ideológica que sobrecarrega os conceitos políticos, o animal político Trump limitou-se a entender o significado do termo como designando um político popular, isto é, um político bem visto pelas pessoas.

Donald Trump e a Alma do Tirano 

O Tirano Vesgo, Ambrogio Lorenzetti

Platão e as formas de governo 

Foi Platão (428-347 a. C.) quem nos legou a primeira reflexão completa sobre a tirania. Entre as suas obras, há quatro diálogos que tratam de maneira expressa da justiça, da lei e da tirania: Górgias, A República, O Político e As Leis. É, no entanto, na República que Platão reflecte de maneira mais demorada e profunda sobre as formas históricas de constituição ou regime político, que ele reconhece e diagnostica como existentes no seu próprio tempo, marcado que foi por uma decadência acelerada da outrora gloriosa democracia ateniense e por uma degradação extrema da pólis grega numa época conhecida como a Era dos Trinta Tiranos.

 

Sendo o diálogo de A República uma descrição da constituição ideal, Platão considera que todas as repúblicas reais, todos os Estados historicamente existentes, são corrompidos – embora de um modo desigual. Por isso, ao contrário do que sucede na tripartição clássica das constituições (governo de um, monarquia/tirania; governo de vários, aristocracia/oligarquia; governo de muitos, politeia/democracia), para Platão a História não é uma sucessão continua de formas boas e formas más de constituição, mas uma sucessão de formas constitucionais más, cada uma pior que a anterior. Enquanto o Estado ideal ou perfeito é um só, uma vez que só pode haver uma constituição perfeita, os Estados imperfeitos são muitos, de acordo com o seu princípio segundo o qual «a forma da virtude é só uma, mas o vício tem uma variedade infinita» (República, 445c).  Por isso, ao postular a existência de seis formas possíveis de governo, Platão reserva duas para a constituição ideal, a saber, a monarquia e a aristocracia, e quatro para as formas constitucionais, realmente existentes, que se afastam, em maior ou menor grau, mas sempre em sentido descendente, da forma constitucional ideal numa República bem ordenada. E estas formas constitucionais históricas são más precisamente porque não se ajustam à constituição ideal, que não existe, ou que existe apenas como modelo. São elas: a timocracia (designação que Platão inventa a partir do termo timé, que significa “honra”), a oligarquia, a democracia e a tirania. A oligarquia, em que governa um número reduzido de cidadãos ricos que atribuem ao dinheiro, e já não à honra, um valor social supremo, corresponde à forma corrompida ou desviada da aristocracia; a democracia, movida por uma ânsia desmesurada de liberdade que depressa se transforma em licença e anarquia, corresponde à forma corrompida ou degradada da “politeia” (segundo Aristóteles, o governo do povo na sua forma mais pura ou ideal-típica); finalmente, a tirania corresponde à forma impura ou bastarda, poderíamos mesmo dizer, criminosa, da monarquia.

 

Antes de prosseguirmos com a caracterização de Platão das principais formas constitucionais, há que sublinhar que a tripartição clássica das formas de governo depende dos três elementos que, segundo o filósofo, compõem a alma do homem: racional, impulsivo, apetitivo. Se a constituição ideal de uma República é dominada pela alma racional e a constituição timocrática pela alma passional, a oligarquia, a democracia e a tirania são todas elas dominadas pela alma apetitiva, sedenta de riquezas e bens materiais. Significa isto que o quadro dos modos de constituição política de uma dada sociedade reflecte sempre os avatares da psicologia humana, existindo tantas formas de governo quantas as espécies de caracteres de homens. E é justamente porque Platão é simultaneamente um enorme psicólogo e um grande dramaturgo, que no diálogo da República ele deixa para o final da sua exposição a caracterização do que chama «a alma do tirano».

 

Tipologia de homens políticos

Antes, porém, de chegarmos à definição da tirania e à descrição da personalidade do homem tirânico, vejamos o modo como Platão caracteriza o homem timocrático, o homem oligárquico e o homem democrático. O primeiro, o homem timocrático, «é intratável para com os escravos, sem os desprezar, como faz quem teve uma educação suficiente; é cordial para com os homens livres, altamente subserviente para com os chefes, amigo do poder e das honrarias, e julga-se merecedor do poder, não devido à sua eloquência ou a qualquer outro predicado, mas em atenção aos seus feitos guerreiros e ao seu saber militar; é apreciador da ginástica e da caça (República, 549 a). O segundo, o homem oligárquico, «é amigo da riqueza, e quanto mais preciosa a julga menos valor atribui à virtude; em vez de ambicioso e desejoso de honrarias, acaba por se tornar avarento e apreciador do dinheiro; louva e admira quem é rico e eleva os ricos ao poder, ao passo que despreza os pobres; homem sórdido, que de tudo faz dinheiro, senta no trono da sua alma, à imagem das antigas cortes persas, o espírito de ambição e de avareza que fará dele o grande rei e o cingirá com a tiara, braceletes e cimitarras». Eis agora o que escreve Cícero a respeito deste tipo de homem: «É que as riquezas, o nome, os recursos desprovidos da capacidade de conselho e de método de viver e de governar os outros, estão cheios de desonra e de insolente soberba, e não existe espécie de constituição mais disforme do que aquela em que os mais ricos são considerados os melhores» (Tratado da República, 1.51). Finalmente, o terceiro, o homem democrático, «é uma pessoa livre que vive numa cidade cheia de liberdade e do direito de falar, tendo licença para aí fazer o que quiser e organizar a sua própria vida como bem quiser e como mais lhe aprouver» (República, 557b). Entenda-se bem o significado destas palavras de Platão: o desejo democrático imoderado de liberdade, uma vez esta transformada em licença, é fonte de servidão e escravatura, de onde nasceram e nascem toda a espécie de tiranias.

 

Uma vez analisados os tipos humanos daqueles que podem governar uma cidade, e tendo em conta que a ética e a ideia de justiça em Platão se fundamentam na ideia de equilíbrio, percebe-se melhor que a corrupção de uma determinada forma constitucional consista sempre no seu “excesso”. Assim, a honra do homem timocrático corrompe-se quando se transforma em ânsia de poder e ambição desmedida de lucro. A riqueza do homem oligárquico quando se transforma em cupidez, avareza, ostentação despudorada de bens, a qual leva à inveja e à revolta dos pobres. Por sua vez, a liberdade do homem democrático corrompe-se quando este passa a ser licencioso, acreditando que tudo lhe é permitido e que todas as regras e normas podem ser transgredidas impunemente. Finalmente, o poder do tirano torna-se intolerável quando se transforma em puro arbítrio e capricho pessoal e este faz um uso gratuito da violência pela violência como se esta fosse um fim em si mesmo.

Donald Trump e a Alma do Tirano

A Soberba, a Avareza, a Vanglória assistem o Tirano, Ambrogio Lorenzetti.

O tirano e a cidade

Venhamos, por fim, à tirania. Para Platão é um facto assente que tal como a democracia se forma a partir da oligarquia, assim a tirania surge da democracia e dos excessos de liberdade nela consentidos, a qual arrasta os cidadãos para uma deplorável condição de servidão. «A liberdade em excesso não conduz a mais nada que não seja a servidão em excesso, quer para o indivíduo, quer para o Estado. E é do cúmulo da liberdade que surge a mais selvagem das escravaturas» (República, 564a). Quanto ao mau uso da liberdade em democracia, o bem mais ambicionado nesta forma de governo, Platão fornece-nos uma imagem prosaica, mas extremamente sugestiva: trata-se de beber um vinho forte em teor alcoólico (a liberdade) sem que este venha misturado ou baptizado com água e na proporção de um terço de vinho para dois terços de água, tal como na Antiguidade era servido nos banquetes o concentrado vinho grego. Com «maus escanções no governo» (República, 562d), os cidadãos da democracia, embriagados com a liberdade para além do que convém e negligenciando tudo o resto, insultam os magistrados e desrespeitam as leis, acabando por mergulhar a cidade na confusão e na anarquia: o excesso de liberdade «torna a alma dos cidadãos tão melindrosa que, se alguém lhes impõe um mínimo de submissão, se agastam e não o suportam; acabam por não se importar nada com leis, escritas ou não escritas, a fim de que de modo algum tenham quem seja senhor deles» (República, 563e).

 

Sobre esta liberdade democrática transformada em licença infinita, Cícero, antes de citar o mestre Platão no seu Tratado da República, afirma o seguinte: «Acontece então, quando as insaciáveis goelas do povo estão secas, com sede de liberdade, e esse povo sedento, servido por maus servidores, sorveu uma liberdade não comedidamente temperada, antes bastante pura, aquilo que está elegantemente descrito em Platão, e que eu não sei se vou conseguir exprimir em Latim! E difícil de fazer, mas vou tentar». E logo a seguir eis que Cícero traduz e reescreve o que Platão diz na República com esta inultrapassável… elegância: «Desta excessiva licença, que eles consideram a única liberdade, como de uma raiz, desponta e como que nasce um tirano. A excessiva liberdade termina em excessiva servidão, tanto para povos como para particulares. É assim que desta liberdade extrema se gera um tirano com a sua injustíssima e duríssima servidão. Ora, deste povo indómito, ou antes desumano, com muita frequência é escolhido um chefe contra aqueles cidadãos de primeira, já abatidos e despojados da sua posição, um homem audacioso, infame, que hostiliza desaforadamente os que muitas vezes foram beneméritos do Estado e que gratifica o povo com os bens alheios e os seus. Porque o assaltam temores, pela sua condição de privado, são-lhe dados poderes supremos que são continuamente renovados, e eis que desabrocha como tirano daqueles mesmos pelos quais foi promovido» (Tratado da República, 1. 68).

 

Que seja dos extremismos da liberdade – tal como esta é praticada nos regimes democráticos – que a tirania nasça talvez possa espantar e surpreender até mesmo o menos liberal dos leitores contemporâneos. Platão, porém, argumenta com solidez e clareza. O tirano, de simples homem privado que é, transforma-se facilmente em lobo. Toda a prolífica tradição do tópico da filosofia política segundo a qual o homem é o lobo do homem (homo homini lupus) começa neste passo de Platão. Odiado pelos cidadãos e temendo ser assassinado, o tirano rodeia-se de uma guarda popular do seu corpo e desembaraça-se dos homens afortunados, acusando-os de serem “inimigos do povo”. No início, pode simular uma grande gentileza e fazer mil promessas; mas a seguir está sempre a suscitar guerras, a fim de que o povo sinta necessidade de um chefe e de um protector, o qual, após ter derrubado os seus rivais e se ter livrado dos ricos e dos chamados homens de bem da cidade, sobe finalmente para o carro do Estado e limpa de vez da cidade os “inimigos do povo” (República, 567a). Finalmente, no que toca à composição da sua entourage, o tirano não tolera os críticos, nem sequer aqueles, precisamente, que o ajudaram a subir para o carro do Estado e que, entretanto, se mostraram os seus mais fiéis validos. A uns e outros ele elimina sucessivamente, sobretudo «aqueles que o ajudaram a elevá-lo àquela posição e que têm poder para falar livremente, diante dele e uns com os outros» (República, 567b), até que, por fim, não sobram a seu lado senão os medíocres, os ineptos e os aduladores. E se o tirano suspeitar que alguns deles albergam pensamentos de liberdade que os afastem da obediência que ele julga deverem-lhe, provocará desavenças entre eles, entregando-os aos inimigos. Por isso, insiste Platão, «um tirano tem sempre necessidade de desencadear guerras, a fim de que o povo sinta necessidade de um chefe». No caso do tirano-lobo Donald Trump falamos hoje de guerras comerciais.

 

Mas, o que acontece, entretanto, ao povo que suscitou e aplaudiu a tirania e que é agora a sua principal vítima? Tarde e a más horas, esse povo dar-se-á então conta do grave erro que cometeu ao gerar, acarinhar e engordar semelhante criatura: «Como diz o provérbio [“ao fugir do fumo foi cair no fogo”], o povo, ao tentar escapar ao fumo que é a submissão a homens livres, há-de cair no fogo que é o despotismo dos escravos, trocando a veste daquela liberdade vasta e inoportuna pela veste da escravidão pesadíssima e amarguíssima dos escravos» (República, 569b).

Se é o excesso de liberdade democrática que leva os homens a cair no regime tirânico, é justamente num cenário de privação da liberdade que Platão situa a atmosfera política em que se desenrola a vida do tirano, esse «homem que governa mal o seu íntimo e que, sendo incapaz de se dominar a si mesmo, tenta mandar nos outros» (República, 579c). Diferentemente do homem oligárquico, do homem timocrático e do homem democrático, e contrariamente ao homem da realeza, que se lhe opõe sob todos os aspectos, o homem tirânico vive agrilhoado no cativeiro dos seus próprios desejos e angústias. Aqui, a diferença entre o homem temperado e o tirano está em que o último é dominado por desejos ilícitos, por desejos violentos e tumultuosos, não em sonhos, mas durante a vigília. O tirano, como soberano, é um lobo, uma besta.  Contudo, não é por isso que ele fará o que quer, pois, segundo Platão, ao ser arrastada por desejos furiosos que ele não consegue saciar, a alma irascível do tirano estará sempre cheia de perturbações e de remorsos (República, 577e). O tirano é o mais infortunado e desgraçado dos homens: «Na verdade, e ainda que assim não pareça a alguns, o tirano autêntico é um autêntico escravo, de uma adulação e servilismo extremos, lisonjeador dos piores; incapaz de satisfazer de algum modo os seus desejos, mostra-se muito carecido de quase tudo e pobre de verdade, se alguém souber contemplar a sua alma inteira, toda a vida cheio de medo, carregado de dores convulsivas, se, na realidade, a sua disposição é semelhante à da cidade na qual ele manda. […] Além destes defeitos, devemos ainda atribuir a este homem a inveja, a deslealdade, a injustiça, a hostilidade, a impiedade, a maldade de toda a espécie de que ele é hospedeiro e sustentáculo, conjunto de que resulta ser ele o mais desgraçado que há, e que depois torna desgraçado quem dele se aproxima» (República, 579d – 580a).

Aqui tendes, caros leitores, Donald Trump. Aqui tendes o tirano. Sem “-ismos”.

A Semana com O Observador

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