domingo, 15 junho 2025

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Escritora cabo-verdiana alerta autoridades para abusos sexuais após "relatos chocantes"  

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 A escritora e socióloga cabo-verdiana Miriam Medina alertou as autoridades do arquipélago para relatos de abusos sexuais, sobretudo de crianças, que ouviu em palestras na ilha da Boa Vista, apelando a uma intervenção urgente.

 

A Câmara da Boa Vista e a delegada do Instituto Cabo-verdiano da Criança e do Adolescente (ICCA) comprometeram-se também a convocar uma reunião alargada sobre a situação."Estou a preparar um relatório para entregar à Câmara da Boa Vista e à Polícia Judiciária, com a lista das vítimas, porque há casos que precisam de denúncia", apontou.

 

A duração habitual das conversas era de uma hora, mas uma delas durou três, "porque houve muitas partilhas, denúncias e foi bastante chocante", referiu a autora, que há anos se dedica ao tema.

Temos políticas públicas e campanhas, mas é urgente trabalhar com as famílias porque estão a terceirizar este papel para os professores", acrescentou.

A convite do município da Boa Vista, uma das principais ilhas turísticas de Cabo Verde, Medina realizou, em abril, 11 palestras em escolas e centros juvenis, com 865 crianças e adolescentes – um trabalho que realiza há vários anos.

Autora do livro "Filhas da Violência", lançado no final de 2024 com 10 histórias de vítimas de abuso, Miriam Medina alertou para o cenário que encontrou na ilha, com múltiplos relatos de abusos sexuais, muitos dentro do ambiente familiar e com um sofrimento emocional visível entre as crianças e jovens.

Durante as sessões, duas adolescentes desmaiaram, no liceu, e várias crianças choraram, obrigando à interrupção das atividades.

"Foi a primeira vez que não consegui terminar uma palestra. Tivemos de parar para acolher emocionalmente as crianças, porque começaram a chorar, a passar mal. É uma situação grave", descreveu.

As denúncias partiram de meninas e mulheres de várias idades, algumas das quais revelaram terem sido vítimas desde os 7 anos, sem nunca antes terem falado do assunto.

"Ainda têm traumas, cicatrizes e muitas delas sabem que o abusador continua a fazer novas vítimas, mas não têm coragem de o denunciar para não desestruturar a família, por vergonha. Estamos a falar de um sofrimento silencioso que precisa de resposta", referiu.

Miriam Medina, que dinamiza palestras sobre violência, desde 2017, em Cabo Verde e na diáspora, disse que desde o início tem alertado para a violência nas redes sociais e, no caso da Boa Vista, tem estado em contacto com a polícia.

"Eu vivo a pensar se há uma fórmula mágica para chegar aos pais e encarregados de educação, para falarmos abertamente sobre isso. Porque em casa não se pode falar em sexualidade, há um tabu. Mas estas crianças estão expostas muito cedo. Vivem num quarto, com camas separadas por uma cortina e presenciam tudo", referiu.

A escritora defendeu que o combate ao abuso sexual exige o envolvimento das famílias, das escolas, das igrejas, das forças de segurança e dos serviços de saúde - apontando a necessidade de haver psicólogos nas escolas, para apoiar alunos e professores que lidam com "feridas emocionais" que as crianças e os adolescentes levam de casa.

A Câmara da Boa Vista e a delegada do Instituto Cabo-verdiano da Criança e do Adolescente (ICCA) comprometeram-se também a convocar uma reunião alargada sobre a situação.

"Estou a preparar um relatório para entregar à Câmara da Boa Vista e à Polícia Judiciária, com a lista das vítimas, porque há casos que precisam de denúncia", apontou.

Miriam Medina é licenciada em ciências sociais pela Universidade Federal do Paraná, Brasil, e mestre na área de estudo pela Universidade de Cabo Verde, com uma experiência em atividades ligadas à educação, direitos humanos e ativismo social.

Já publicou três obras literárias sobre violência e é socióloga na Comissão Nacional para os Direitos Humanos e Cidadania.

O país lançou, em fevereiro, um programa para apoiar 450 crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual ou em situação de risco, anunciou a organização Aldeias Infantis SOS, uma das parcerias do projeto que pretende prevenir os maus-tratos.

O projeto "Djunta Mom" (expressão em língua cabo-verdiana que significa dar as mãos) é financiado pela União Europeia (UE) e será implementado até 2027.

"Muitas vezes, o perigo vem de dentro de casa, da proximidade, não vem de longe", referiu Ricardo Andrade, diretor da instituição.

De acordo com o último relatório sobre a situação da justiça (de agosto de 2022 a julho de 2023), o Ministério Público cabo-verdiano registou 635 processos por crimes sexuais, sendo quase metade por abusos contra crianças.

O Ministério da Justiça cabo-verdiano apresentou, em 2024, um programa para intervir junto dos condenados por crimes sexuais no país, depois de um estudo concluir que um terço dos casos ocorre no seio familiar.

Também no último ano, o Presidente cabo-verdiano, José Maria Neves, enquadrou a violência sexual contra menores entre as "nódoas" do país, que espera que sejam banidas "definitivamente".

A Semana com Lusa

jcf
A Genética do Silêncio: Quando a Mestiçagem Nasce da Violência e se Reproduz na Impunidade
É preciso, sim, falar sem paninhos quentes. E é tempo de rasgar o véu da hipocrisia histórica, social e até genética que cobre a realidade de muitos povos afrodescendente s, em especial em sociedades mestiças como a cabo-verdiana. O alerta da escritora Miriam Medina é mais do que um grito de socorro — é um espelho sujo, onde somos obrigados a encarar, de frente, a violência estrutural herdada desde o tempo colonial. E não se trata apenas de casos isolados de abuso sexual: trata-se de uma continuidade silenciosa, histórica, camuflada, onde o corpo da mulher negra, e sobretudo o corpo da menina, foi e continua a ser colonizado, invadido, explorado.

Vamos aos factos. A figura do mulato, tantas vezes romantizada como símbolo da mestiçagem “harmonios a”, tem raízes num acto violento. A maior parte da miscigenação nos territórios colonizados não foi fruto de amor interracial nem de integração social voluntária. Foi, sim, resultado da violação sistemática da mulher negra por homens brancos — colonos, soldados, clérigos — que viam os corpos das negras como propriedade a ser usada e descartada. E isso está entranhado no nosso ADN colectivo, não apenas como marca biológica, mas como trauma intergeracional que se perpetua em silêncio.

É preciso coragem para admitir que, em Cabo Verde, como em muitas outras sociedades pós-escravistas, nunca houve um verdadeiro processo de reparação, nem sequer de responsabilização. As estruturas de poder, a linguagem, os silêncios cúmplices, tudo isso normalizou a ideia de que a violência sexual, principalmente contra crianças, pode ser escondida, abafada ou minimizada em nome da "estrutura da família" ou da "honra".

O que se passou na Boa Vista é repugnante, sim — mas não surpreendente. Porque as crianças vivem em condições onde não há privacidade, onde os tabus matam o diálogo e onde a masculinidade tóxica ainda se confunde com autoridade familiar. Pior ainda: quando uma menina tem de calar a violação para “não desestruturar a família”, estamos, na prática, a dizer-lhe que a estrutura da família depende do silêncio dela e da impunidade do agressor. Isto é profundamente doentio.

A genética do abuso continua a transmitir-se, não no sangue, mas nos padrões comportamentais , no machismo institucionaliz ado, na moral de dois pesos e duas medidas, na ausência gritante de justiça restaurativa. E o Estado? A reagir com “reuniões alargadas”, enquanto o predador continua à solta.
(desculpem não há espaço para desenvolver)

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