1967, faltam 14 anos para Ronald Reagan ser eleito Presidente e faltam quase 50 anos para o seu futuro slogan de campanha, “Make America Great Again”, ser reciclado pelo empresário Donald Trump, naquela que foi a sua primeira incursão na política americana. Recém-eleito governador da Califórnia, Reagan, o ator tornado político, lembra na tomada de posse que “a liberdade é uma coisa frágil e nunca está a mais de uma geração de distância da extinção.”
Prestes a mudar-se para o Canadá, Stanley destaca “paralelos óbvios” entre o clima na Alemanha dos anos 1930 e a atualidade no seu país-natal. “Estou a ir de má vontade, porque não quero deixar os Estados Unidos”, adianta o judeu filho de sobreviventes do Holocausto e autor de dois livros sobre fascismo já traduzidos em português. “Os EUA são a minha casa e serão sempre a minha casa.”
"O ramo judiciário está a resistir"
Nunca nenhum Presidente assinou tantos decretos nos seus primeiros 100 dias no poder na história dos EUA – mais de 130 até agora, na senda de implementar uma “reforma conservadora” e aumentar a “eficiência governamental”. Esta última expressão dá precisamente nome ao departamento que Trump criou em janeiro, o DOGE, que sob a liderança do bilionário Elon Musk tem assinado despedimentos em massa em inúmeros setores e instituições do aparato governamental norte-americano.
Muitas destas ordens presidenciais estão já a ser combatidas em tribunais de várias instâncias, onde os primeiros moldes de resistência estão a ganhar forma, e é também para lá que a administração Trump já está a apontar a mira, com pelo menos dois juízes detidos nos últimos dias – Hannah Dugan, do Wisconsin, e o ex-juiz Joel Cano, de Nova Iorque. "Ninguém deve ficar surpreendido pelas detenções dos dois juízes", veio dizer Tom Homan, nomeado por Trump para "controlar a imigração ilegal".
“O ramo judiciário, ao contrário do Congresso, está a resistir", ressalta Paul Beck. "Mas o Supremo Tribunal é o árbitro final e ainda não tomou nenhuma decisão de forma consistente.”
Nem há uma semana, numa decisão que alguns analistas dizem marcar um dos primeiros sinais positivos de que o Supremo vai funcionar como travão ao reforço desmesurado do poder executivo, a mais alta instância judicial aceitou o recurso interposto por um grupo de imigrantes venezuelanos. Na prática, a decisão suspendeu temporariamente a sua ordem de deportação, emitida pelo governo federal com base na Lei dos Inimigos Estrangeiros, de 1798, que em teoria só pode ser aplicada quando os EUA estão em guerra ou enfrentam uma invasão territorial, mas na qual a administração Trump se tem apoiado para deportar centenas de imigrantes – e não só.
“O Supremo Tribunal sinaliza que pode estar a perder a paciência com Trump”, escreveu o site Vox no rescaldo da sentença temporária. Para Beck, contudo, é demasiado cedo para tirar conclusões. “Há vários casos em curso nos tribunais federais dos EUA, a maioria contestando ações do Governo Trump. Alguns já foram concluídos, principalmente contra Trump. Alguns têm suspensões temporárias de ações do Governo Trump. Mas a decisão final será tomada posteriormente.”
Nalguns dos casos a transitar na Justiça, “o Supremo não tomará uma decisão, permitindo que as decisões dos tribunais menores se tornem lei”, adianta o especialista. Mas “em alguns casos com maior visibilidade, por exemplo, o da cidadania por nascimento, aguardamos uma decisão do Supremo Tribunal. Espero que o Governo Trump saia a perder nos casos que forem decididos pelo Supremo, mas ainda falta algum tempo para sabermos se assim será.”
Casos como o de Mahmoud Khalil, estudante de Columbia com autorização de residência que foi ilegalmente expulso dos EUA por participar em manifestações de apoio à Palestina, têm feito manchetes dentro e fora do país. O caso mais gritante até agora foi o de Kilmar Ábrego García, que foi enviado para uma prisão offshore dos EUA em El Salvador. Inicialmente, o Governo admitiu que a sua deportação se deveu a um “erro administrativo”, mas passou, entretanto, a alegar, sem provas, que o americano salvadorenho é, afinal, um membro do gangue MS-13.
Num encontro com Trump na Casa Branca, o próprio Presidente de El Salvador assumiu o compromisso de não devolver Ábrego García ao seu país de origem, com a conivência do homólogo norte-americano – que neste e noutros casos continua a desafiar ordens dos tribunais. “Trump pode ignorar as decisões judiciais, como já fez nalguns casos, embora ainda estejam a ser analisados pelos tribunais”, refere Paul Beck – se, em última instância, “ignorar ordens judiciais, teremos uma crise constitucional”.
"Altura de impor salvaguardas à democracia"
Entre os processos judiciais que a administração Trump enfrenta conta-se um iniciado por uma coligação de organizações sem fins lucrativos, incluindo o Campaign Legal Center (CLC). O alvo do processo é a chamada Lei SAVE, um pacote legislativo abrangente que pretende alterar as regras de elegibilidade para votar em eleições federais – e que, argumentam os queixosos, “ameaça ilegal e inconstitucionalmente a liberdade de milhões de americanos”.
Contactado pela CNN, o CLC explicou que “este decreto exigiria que os eleitores passassem por etapas onerosas e desnecessárias ao registar-se para votar, exigindo que passem a fornecer documentação adicional que comprove a sua cidadania”, num país onde “mais de 21 milhões” de pessoas não conseguem aceder a esses documentos adicionais exigidos. “A lei SAVE pode silenciar milhões de eleitores ao criar novas barreiras ao registo eleitoral, dificultando a capacidade dos americanos se fazerem ouvir nas urnas”, indica a organização, invocando como grupos mais em risco de serem desincentivados a votar “mulheres casadas, idosos com cadastro, jovens, eleitores hispânicos e eleitores com baixos rendimentos”.
Como ressaltava no final de março a NPR, a rádio pública americana, o decreto define como documentos aceitáveis certidões de nascimento e passaportes americanos – “mas para cerca de 69 milhões de mulheres americanas que adotaram o apelido do cônjuge, as suas certidões de nascimento não correspondem aos nomes que usam hoje em dia” e “mais de metade dos americanos não possui passaporte”.
A Casa Branca diz que a solução é esses milhões de pessoas obterem os documentos em questão para poderem votar, mas como refere à NPR Tracy Thomas, professora de direito constitucional na Universidade de Akron, “tudo isto pode parecer um custo trivial, mas vai somando – há também atrasos, inconveniências e encargos administrativos em cada etapa, o que cria mais obstáculos e desestimula o voto”.
A par deste e de outros processos, o CLC também está a aguardar resposta a um pedido de registo público para escrutinar o funcionamento interno do DOGE de Musk, face ao que o diretor executivo da organização ressalta como um risco de os EUA se transformarem numa oligarquia sem transparência.
“Apesar de não ter sido eleito pelo povo americano, a ascensão do bilionário Elon Musk ao poder representa uma nova e perigosa forma de Trump manipular o nosso sistema para que os seus maiores dadores possam usar o governo federal para encher os próprios bolsos”, refere Adav Noti. “Agora é a altura de impor salvaguardas à democracia para garantir que o poder executivo não seja leiloado ao maior licitante por qualquer Presidente.” (Até ao fecho desta edição, o CLC ainda não tinha obtido resposta ao pedido FOIA.)
"Soa alarmista? Perdoem-me se isso não me importa"
O funcionamento interno do DOGE ou os decretos e políticas anti-imigração de Trump são apenas a ponta de um icebergue que analistas, historiadores e dissidentes de regimes autoritários dizem ser a perigosa e veloz erosão da democracia americana, entre eles o campeão mundial de xadrez Gary Kasparov.
Num artigo de opinião sobre “como a América pode evitar transformar-se na Rússia”, um dos mais famosos críticos (ainda vivos) do Presidente russo, Vladimir Putin, apontava há alguns dias o que considera o melhor roteiro para resistir ao crescente poderio de Trump nos EUA, onde vive parcialmente desde que se autoexilou há mais de uma década.
“Se isto soa alarmista, perdoem-me se isso não me importa. Há exatamente 20 anos, retirei-me do xadrez profissional para ajudar a Rússia a resistir à ditadura de Putin que então brotava. As pessoas também demoraram a entender o que estava a acontecer lá.” Os paralelismos com a Rússia do final do milénio, como com a Alemanha dos anos 1930, estão todos lá, adianta Kasparov sobre o “ritmo alucinante” com que o Governo americano está a “enfraquecer e desvalorizar a máquina governamental, por um lado, e a privatizar as alavancas do poder, por outro”.
“Atacar o jornalismo enquanto ‘fake news’ e inimigo do Estado? Confere. Deslegitimar o poder judiciário, o derradeiro travão constitucional quando uma legislatura é cooptada e irresponsável? Confere. Expandir a influência sobre a economia, ameaçando empresas e usando as tarifas para fazer nascer uma crise e um sistema de despojos? Confere. Criar uma cultura de medo através da perseguição de indivíduos e grupos impopulares? Been there, done all of that.”
Um dos pilares mais visados até agora é a academia, com ameaças de retirada de financiamento federal e do estatuto de isenção de impostos a todas as universidades que não cedam às exigências da administração, entre elas acabar com iniciativas DEI, de Diversidade, Equidade e Inclusão (a mesma exigência já feita pelas embaixadas dos EUA a instituições culturais e empresas europeias).
“Imagine-se se fosse dito aos jornais: ‘Vamos monitorizar o jornalismo que fazem para garantir que contratam jornalistas e redatores com opiniões favoráveis a Trump’. Vocês saberiam que tinham deixado de viver numa democracia. Com as universidades não é diferente”, ressalta à Foreign Policy Jason Stanley, o professor de Yale que vai mudar-se para o Canadá, dando como exemplo outros casos históricos em que os ataques às universidades foram o primeiro sintoma de uma doença a alastrar, como o de Benito Mussolini na Itália de há um século.
“Olhando para o mundo inteiro, os autoritários atacaram primeiro as universidades. Os media continuam sem entender. Perguntam: ‘Porque é que o Governo Trump está tão focado nas universidades?’ Não por doutrinação ideológica, mas porque albergam muitos jovens inteligentes chamados estudantes, que sempre foram uma fonte de resistência ao autoritarismo”, responde Stanley.
Batalhas em curso
Entre a consolidação do poder executivo, o enfraquecimento dos controlos institucionais, a perseguição de críticos e a promoção de uma agenda ideológica específica, aumentam as comparações dos EUA de Trump com países que estão a resvalar ou já resvalaram para o autoritarismo, desde a Hungria de Viktor Orbán e a Turquia de Recep Tayyip Erdogan à Rússia de Vladimir Putin e à China de Xi Jinping. “Goste-se ou não, estão no topo do seu jogo”, diz o Presidente dos EUA.
“O Partido Republicano moveu-se tanto para a direita que está ideologicamente alinhado com a Turquia e a Rússia”, ressalta Kasparov no seu artigo. “A recusa do Governo Trump em criticar Putin pode muito bem dever-se à sua esperança de o imitar, assim como a reabilitação do legado de Estaline por Putin seguiu políticas que replicaram as do ditador soviético. E Musk expressou admiração pela China de Xi Jinping, um Estado repressivo de partido único onde tem interesses comerciais.”
Um dos pontos comuns entre Rússia e China é a longevidade dos mandatos dos seus dois líderes, Putin e Xi, algo que Trump também parece disposto a replicar. Depois de ter namorado a ideia de concorrer a um terceiro mandato durante a campanha presidencial, voltou a invocar essa hipótese numa entrevista à CBS News há um mês, quando garantiu que “há métodos através dos quais é possível fazê-lo”.
Os constitucionalistas têm repetido que um terceiro mandato será sempre ilegal, uma ideia que é sustentada por Paul Beck à CNN. “Um terceiro mandato de Trump não será permitido pela Constituição – haveria uma crise constitucional se ele tentasse tomar o poder, embora possa tentar.”
Por agora, Trump diz que tem “um longo caminho a percorrer” e que está “concentrado no presente”. E o presente, alertam figuras proeminentes e organizações dentro e fora dos Estados Unidos, não é risonho. “Grande parte do que o Governo Trump já fez foi por meio de decretos, muitos sob análise de diversos tribunais federais”, adianta Beck, sublinhando a esperança de que “muitas das ações de Trump sejam anuladas” pelo Supremo.
“Por enquanto, os EUA são mais como a Hungria ou a Turquia. A questão fundamental é que as batalhas ainda não terminaram. E ainda vai demorar um pouco até terminarem. No caso de Putin, as questões foram resolvidas a seu favor. No caso de Orbán e Erdogan, parece que se encaminham nessa direção, mas ainda existe a possibilidade de eleições contra eles. Ainda não alcançaram o domínio de Putin. E Trump também não consolidou o poder ao nível de Putin – ainda.”
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