TRÊS ANOS DE GUERRA || Três anos de resistência ucraniana contiveram a Rússia, mas a perspetiva de um corte no apoio militar dos EUA coloca em xeque o futuro do país.
"A perda da ajuda dos EUA tornaria a situação mais difícil para as forças ucranianas? Sim. Conduziria a um colapso total em seis meses? Não. Significaria a morte de mais soldados e civis ucranianos, especialmente à medida que as reservas de defesa aérea se esgotassem, mas no campo de batalha não haveria um colapso súbito, pelo que tais afirmações são irresponsáveis", escreve o analista.
Durante três anos, a Ucrânia aguentou com quase tudo o que a Rússia atirou para o seu caminho. Durante três anos, a Ucrânia assistiu a pais enterrarem os filhos que combateram pelo país, a cidades serem reduzidas a escombros e sobreviveu aos invernos gelados ao som de geradores a gasolina. Contra todas as probabilidades, a Ucrânia sobreviveu. Agora, a principal fonte de esperança para a Ucrânia tornou-se na sua principal fonte de incerteza. De Washington surge a ameaça de um corte no apoio militar e há quem tema que o exército ucraniano tenha sérias dificuldades em defender-se contra os ataques russos, particularmente se Donald Trump travar um apoio muito específico.
"Se os Estados Unidos deixarem de apoiar a Ucrânia do ponto de vista militar, é provável que o seu exército não dure mais de seis meses. Quem o diz são os próprios ucranianos. Mesmo com a ajuda da União Europeia seria muito difícil, porque não têm reservas nem capacidade de produção semelhante à americana", alerta o major-general Agostinho Costa.
E os ucranianos parecem concordar com esta análise. O antigo vice-chefe de Estado Maior das Forças Armadas ucranianas, Ihor Romanenko, disse exatamente o mesmo durante a Conferência de Segurança de Munique, sublinhando que a Europa não tem capacidade de substituir os Estados Unidos no apoio militar à Ucrânia. E não está sozinho na análise. O próprio presidente Volodymyr Zelensky insistiu que "há sempre uma hipótese", mas que as chances de sobrevivência sem o apoio americano "são muito baixas".
E, depois de três anos de guerra, o apoio militar americano pode estar mesmo a chegar ao fim. Mike Johnson, presidente da Câmara dos Representantes, disse que "não há apetite" nos Estados Unidos para aprovar novos pacotes de apoio à Ucrânia no Congresso, trazendo de volta a sombra do impasse de seis meses que atrasou o envio de ajuda militar a Kiev e levou à queda da cidade de Avdiivka, em abril, um dos principais bastiões defensivos ucranianos. Qualquer nova interrupção poderia ter consequências catastróficas para os ucranianos.
A ausência de apoio militar norte-americano, que ultrapassa os 70 mil milhões de dólares durante três anos, teria um efeito quase imediato em toda a linha da frente, uma vez que os americanos fornecem uma vasta parte das munições de 155mm utilizadas pela Ucrânia e que são fundamentais para travar os ataques russos em toda a frente. Ainda assim, vários países da União Europeia têm vindo a aumentar a produção de munições e a própria Ucrânia está a acelerar o ritmo de produção de munições de vários calibres.
Mas numa área em particular a Ucrânia está completamente nas mãos do apoio americano: a defesa antiaérea de longo alcance. A antiga administração norte-americana foi capaz de fornecer à Ucrânia os sistemas de defesa aérea de longo alcance Patriot, capazes de abater mísseis e drones russos a longas distâncias. Estes sistemas têm sido fundamentais para proteger a capital, Kiev, mas também alguns dos alvos prioritários como as infraestruturas críticas que produzem energia. Aliados ucranianos como a Alemanha e a Itália produzem alguns mísseis de curto e médio alcance, mas podem não ser suficientes para as necessidades da Ucrânia, que vai ficar muito mais exposta.

"A parte mais crítica será, sem dúvida, se os norte-americanos desligarem o sistema Starlink. Todo o sistema de comando e de controlo ucraniano é feito através dele e é com estes terminais que a Ucrânia tem perceção do que se passa no campo de batalha e consegue controlar os drones aéreos e navais. Se este apoio acabar, ficam em muito maus lençóis. O desfecho da guerra pode estar nas mãos de Elon Musk", considera Agostinho Costa.
A comunicação entre unidades seria forçada a depender de rádios ou sistemas terrestres vulneráveis a interferências russas, atrasando respostas dos militares e expondo tropas a ataques surpresa. A Ucrânia, já em desvantagem numérica, perderia uma vantagem tecnológica crítica que foi fundamental em 2024. O último ano de guerra foi particularmente violento, com o maior número de baixas desde que começou. Segundo o chefe do estado-maior da Ucrânia, Oleksandr Syrskyi, a Rússia perdeu 427 mil homens, entre mortos, feridos e capturados.
E ainda assim esse esforço não obteve os efeitos desejados pelo Kremlin. Segundo o Institute for the Study of War (ISW), um think tank de defesa norte-americano, o exército russo conquistou 4.168 quilómetros quadrados de território, uma área mais pequena do que o distrito de Faro. E isto não inclui o território russo ocupado pela Ucrânia na região de Kursk. Mas onde a situação é mais complexa é nos arredores de Pokrosvk, uma cidade na região de Donetsk, onde os russos foram travados depois de conseguir rápidos avanços após a conquista de Avdiivka.
Mas nem todos concordam que uma quebra do apoio norte-americano leve ao colapso da linha da frente em menos de seis meses. Para Tatarigami, um antigo oficial ucraniano e fundador do grupo de análise Frontelligence Insight, o facto de a vasta maioria das vítimas da linha da frente serem alvo de drones - cujos componentes são comprados à China e produzidos em escala por startups ucranianas - dá alguma esperança de que a Ucrânia continue a ser capaz de combater, desde que o apoio financeiro continue a chegar vindo da União Europeia.
"A perda da ajuda dos EUA tornaria a situação mais difícil para as forças ucranianas? Sim. Conduziria a um colapso total em seis meses? Não. Significaria a morte de mais soldados e civis ucranianos, especialmente à medida que as reservas de defesa aérea se esgotassem, mas no campo de batalha não haveria um colapso súbito, pelo que tais afirmações são irresponsáveis", escreve o analista.
Em Pokrovsk, os russos estão a colocar essa teoria à prova, com a sua nova tática. Depois de os dois primeiros anos de guerra terem sido marcados por um enorme desgaste da frota - de acordo com o grupo de análise de fontes abertas Oryx os russos perderam perto de 12 mil veículos -, Moscovo mudou a sua forma de atacar as posições ucranianas. Abandonou as grandes colunas de veículos e lança agora pequenos ataques de infantaria apoiados por drones FPV e bombas planadoras.
"Os russos têm tido muitas dificuldades em ganhar terreno, em grande parte por causa do declínio contínuo na qualidade de sua infantaria, impulsionado por uma alta taxa de atrito ao longo de 2024. Mas essa tática coloca as tropas ucranianas na mira de outras capacidades da Rússia", de acordo com Jack Watling, investigador do think tank de defesa britânico Royal United Services Institute (RUSI).
Essas capacidades são a arma mais letal russa, para a qual os ucranianos ainda não encontraram solução: a bomba planadora. Estes explosivos de grandes dimensões, equipados com um kit de GPS, são lançados de 40 a 70 quilómetros do alvo, atingindo-o com grande precisão. A capacidade explosiva destas bombas é muito significativa, sendo capaz de destruir por completo até as mais preparadas estruturas defensivas. A única solução que resta aos militares ucranianos é espalharem-se pelo terreno, para evitar que a Rússia atinja aglomerações de soldados.
Mas com os militares ucranianos espalhados ao longo de uma frente que, neste momento, tem mais de 1.200 quilómetros de comprimento, torna-se difícil o seu reabastecimento. Qualquer movimento ucraniano em direção às trincheiras é prontamente atacado por uma orquestra de drones e de artilharia. E a Rússia está a utilizar um tipo de drones particularmente eficaz. A Rússia é pioneira na utilização de aeronaves não tripuladas controladas através de um fino cabo de fibra ótica, o que torna o drone invencível contra ataques de guerra eletrónica. Só que apesar das vantagens militares russas, Moscovo não tem sido capaz de explorar as fragilidades de Kiev no terreno.
"Embora, atualmente, a Rússia tenha a vantagem militar, a margem dessa vantagem é reduzida. O desempenho das forças armadas russas é extremamente fraco, em grande parte devido à fraca qualidade da sua infantaria e à falta de comando e controlo a nível inferior. Embora a Rússia esteja regularmente a romper as linhas de defesa ucranianas, não está a conseguir explorar essas brechas", defende o especialista militar do RUSI.
Mesmo que a União Europeia consiga encontrar o consenso para aumentar o apoio à Ucrânia para compensar o vazio deixado pelos Estados Unidos, o exército de Zelensky continua a ter os principais problemas que atravessa neste momento. Segundo Jack Watling, a Ucrânia precisa de melhorar a sua capacidade de "geração de forças" através de uma melhoria no recrutamento e na capacidade de dar às dezenas de milhares de veteranos de guerra ucranianos uma possibilidade de descansar. Além disso, o especialista defende que a Ucrânia deve aumentar os salários dos militares e as compensações para as famílias, de forma a melhorar o moral dos soldados.
"Os decisores políticos da Europa enfrentam agora uma escolha clara. Se querem a paz, têm de investir nas suas forças armadas para a poderem manter. Se a Ucrânia for derrotada, a ameaça para a Europa será grave. Permitir a vitória da Ucrânia exige igualmente um investimento na capacidade industrial para a manter. A Europa tem o dinheiro. Ainda não é claro se o Reino Unido e os outros parceiros europeus da Ucrânia têm vontade de o gastar", defende Jack Watling.
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