Saturday, 19 October 2024

Esmerado Ensejo de Retorno

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Hoje, 30 anos depois, volvidos os céus e por vezes vivendo a gigantesca turbulência sazonal, tenho o ensejo de amanhar a então promessa de reabraçar o meu Cutelo de Eutimia, caminhando amenamente na majestosa Ribeira de Candura, para voltar a banhar-me na praia de eleição de “Casa Bedja”, na zona de Veneza ou Planície de Ramboia e Passa Sabe, como também lhe chamo nos meus ofícios.

Por Domingos Landim de Barros*

 

Há muito que vivo o dilema de ficar ou deixar para trás as grandes urbes, refugiando-me no recesso do interior. A interioridade é o ícone de mim e paraíso da minha ingente aspiração. O aprontar da Comarca Judicial de São Miguel pode ser um veemente apelo ao íntimo de mim, no sentido de concretizar o enorme desiderato da minha vida. É, sem dúvida, um bálsamo pujante e rebuscado, um aliciante óleo na estrada de vontade da minha saga. Um verdadeiro leitmotiv para me cativar e dar arrimo, levando-me a cumprir a solene palavra dada há bué de tempo. E o clique, o sininho para me pôr a despertar e a agir nesse sentido, aconteceu a 13 de dezembro de 1993. Nessa fatídica ocasião passou-me pela película da mente uma miraculosa premonição. E apesar de não possuir o dom de ubiquidade, já projetava o advento da minha pulcra e deslumbrante freguesia. Via-a com a silhueta de uma ninfa, uma esbelta huri de brinde.

Nesse invulgar instante de epifania, visualizei a Calheta de São Miguel na atualidade. Nunca acreditei em qualquer poder sobrenatural, que não fosse o emanado diretamente do Deus-pai. Ainda assim, depois de interpretar o conteúdo do documento em apreço, à luz de agora, facilmente se chega à airosa constatação do vetusto compromisso em pauta. O instrumento onde tive o arrojo de pedir, sem pestanejar ou titubear, aos 32 anos de idade, a minha precoce desvinculação da outrora atividade profissional, pondo de parte as então amarras oficiais, para me colocar inteiramente ao dispor das prementes necessidades do meu rincão, em Arquétipo dos Anjos. Confesso que ainda hoje acalento a esperança de ser um místico eremita e de me instalar em Cutelo de Eutimia do meu arraial, no poleiro da herdade da minha gente, em Ribeira de Candura, o jardim do meu avô, o maestro da família e do pro

 

eminente José de Carvalho, um dos mais valiosos candelabros da ilha de Santiago e de Cabo Verde, na agonia do século XIX e no despontar da primeira metade do século XX. Caramba! Uma candeia tão radiante e assaz possante, que nem espetro de lampejo de Rui Vaz, em altino Monte Tchota.  

Depois do antigo sétimo ano dos liceus, recusara o vulto do nosso orgulho tomar as ordens eclesiásticas e resolvera correr sozinho os seus riscos, orientando-se pelo cintilar da sua bússola mental. Orador de excelsíssimo quilate e aguerrido defensor do povo, o causídico de preito e general Humberto Delgado da nossa desafiante comunidade não vacilava nem se acobardava. Jamais em tempo algum. Por isso, entraria em rota de colisão com as prepotentes autoridades coloniais e com a própria cúria romana, por plúrimos motivos. Sobretudo, por excesso de rituais, cansativas e fúteis cerimónias, bem como pela falta de humanismo, no tratamento reservado aos nativos da província do harmatão.  O que mais o enfurecia era a sinistra hipocrisia de irmandade. «Coisas de falácia, para nos porem a entreter e a dormir em pé», argumentava. Assim, Giordano Bruno ou Jhon Huss cabo-verdiano fazia tremer a instituição católica e os seus mais ilustres representantes. O precursor de Martin Luther King acedia à igreja, assistia à eucaristia e saía antes da bênção, porque encapelava o sobrecenho da sua argúcia, para afirmar, em tom de deboche, de modo altivo e assaz convicto – «A missa tem a duração de um quarto de hora. Tudo o resto não passa de paródia exacerbada do sacerdote». De seguida, desembrenhado, pegava no seu chapéu, dava costas ao templo e empreendia a suada caminhada em direção à ribeira acima.

Seminarista dos alvores esplendorosos da Ribeira Brava de São Nicolau, o espirituoso José de Planta foi a nossa antevisão do doirado, benquisto e fabuloso trio da Abássida de aprumo, Joaquim Pinto de Andrade, Amílcar Lopes Cabral e Mário Pinto de Andrade. Ah Golungo Alto dos irmãos Andrade e do imenso Camarada Agostinho Neto! Golungo Alto também a seara de adoção, de estima e de vivência, até morrer, do decano dos meus tios, o primevo aventureiro do nosso clã, Manuel Landim de Barros. Ah tio Manel! E nessa saga dos antigos peregrinos, com destino ao «Sul a Baixo», só a minha irmã mais velha, mana Tatá, ou seja, Romualda Landim de Barros, escolheria Luanda para casar, viver e procriar os seus rebentos. O verdejante Golungo Alto, em razão do denodado afeto que o meu tio lhe dispensava, passou a ser para mim uma pasárgada de sonho, de esmero e de afeiçoada aproximação, mui querida e mimoseada.

Assim, Golungo Alto, a terra dos cafezais de Dona Ginga e Rei Mandume, é por mim visto, com o mesmo grau de devoção e mel nos olhos com que miro a Ribeira de Candura, Milho Pula e Achada Equestre, no domínio dos meus avós e bisavós, lugares onde calcorreei e assaz brinquei, em Arquétipo dos Anjos do meu torrão. Nesse tempo, também chegava ao recesso do meu arraial o incensado e saboroso café de Golungo Alto, por iniciativa e gentileza do meu estroso tio, o engajado lavrador a vida toda. Ai aroma do café daquele sítio! A nossa casa cheirava a odor de estonteante qualidade, durante dias. Por outro lado, Arsénio Tavares, um homem calejado nas lides de São Tomé e Príncipe, um fã inveterado e obcecado nas virtudes e maravilhas desse amigo território. Arsénio havia cumprido três coercivos contratos de serviçais nas roças dessa então província ultramarina. Por isso, quando os desavisados da zona desatavam a elogiar as proezas de Angola ou da Guiné, ele acenava com a mão e mandava parar. Só de Moçambique, de entre os hoje PALOP, ninguém falava nessa altura. A não ser para se referir e lamentar o que o meu ingrato tio Vasco Miranda se encontrava por lá, perdido e sem dar notícias. Se calhar, a pátria do magnânimo Mondlane estava tão longe, ontem, como continua a estar agora.

Coitada da desculpa de distância e longitude! Depois de se insurgir gestualmente, o velho Arsénio polidamente rogava - «Tenham calma meus irmãos. Não há melhor lugar para se estar do que em São Tomé e Príncipe, no planisfério. Vocês não conhecem a paisagem predileta da teoria de Albert Einstein, para aprovação dos seus estudos? Gente, a Relatividade Geral do magnata da ciência e burilada inovação foi testada e avalizada na afortunada Ilha do Príncipe». Posto isso, desabafou, em jeito de desdém pela própria eira dos pais – «Pena é que já estou a ficar velho. Caso contrário, preferiria viver mil vezes em Santo António do Príncipe, a ter que gramar este inviável cemitério a céu aberto, onde nem chuva de Deus cai». Bem, deixemos de lado a fervura de flor da pele e franqueza de imo do nosso prestimoso vizinho e maioral, com relação às ilhas fenomenais da eminente poetisa, Alda de Espírito Santo, e do seu inaugural presidente de aventura, Manuel Pinto da Costa, para voltarmos ao tema acutilante que aqui nos trouxe. Eu temo a distância e a falta dela. Eu só choro a impossibilidade de a tocar e clamo por ensejo de a domar, conquistar e reduzir.

Neste momento de expetável retorno ao berço, canta e dança comigo a lídima francelha do meu Cutelo. E um pouco a contragosto também aceito a presença de garça branca de todos os azares dos anos de estiagem e de penúria correlativa, que se apossava do rebordo da minha Angra, para nos ameaçar e assustar com a falta de precipitação e de colheita. Não obstante isso, sinto-me compelido a invocá-la e recordá-la, para que nada de essencial fique de fora deste suposto e quiçá prodigioso imaginário. Numa toada um tanto diferente, sou a bendizer dos passarinhos, que poisavam no açude de telhado do devir da minha nimbada capela-escola de meninice. Ah nitente e fervilhante asilo de pupilos dos idos de puerícia e de naífe ingenuidade!

Em boa verdade, a minha infância foi de sortida mirabolância e de dulcíssima paixão pelas enseadas e baías de azafamado convívio diário com os demais, os porreiros e coetâneos da leda instância. Também canta e toca comigo a trombeta do zeloso anjo da guarda do meu percurso, de todas as atribulações e sudoríparas demandas quotidianas da lide inteira. O eco destes magníficos arautos bate e toca-me no cocuruto da cabeça, o tempo todo. Todavia, para evitar a repetência obsessiva da espécie do egrégio Jota Monte, nas suas propaladas e intermináveis partidas e chegadas, sem ideia de maldade, prefiro esperar para crer no desenlace das timbradas e sonoras cordas do destino, no que a mim me tange e mui enlaça. Fica, porém, uma certeza: com o Tribunal Judicial a funcionar, em pleno, na Cidade de Calheta, deixará de haver qualquer tipo de estorvo ou empecilho, no que concerne ao meu triunfal regresso ao túmulo de umbigo, isto é, à minha estância de ática pertença (espero bem que assim seja).

Hoje, 30 anos depois, volvidos os céus e por vezes vivendo a gigantesca turbulência sazonal, tenho o ensejo de amanhar a então promessa de reabraçar o meu Cutelo de Eutimia, caminhando amenamente na majestosa Ribeira de Candura, para voltar a banhar-me na praia de eleição de “Casa Bedja”, na zona de Veneza ou Planície de Ramboia e Passa Sabe, como também lhe chamo nos meus ofícios.

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*Da seara dos PALOP e convicto lusófono

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