Praia Baixo, ilha de Santiago, é uma das comunidades cabo-verdianas que ainda preserva a tradição da troca de alimentos, no prato, entre vizinhos: o sinal de amizade e solidariedade resiste, passando de geração em geração.
"Faço cachupa [prato típico, símbolo do país] e preparo sempre um pouco mais para partilhar. Hoje fui à missa e, quando voltei, a minha vizinha já tinha trazido um prato para a minha filha. Isto é pura amizade", explica.
"Sempre troquei comida [no prato], desde que me lembro, lá na minha zona, em Monte Negro. Quando vim morar em Praia Baixo, com o meu marido, encontrei a mesma tradição", conta à Lusa Maria dos Santos, 59 anos, enquanto prepara um prato de arroz, peixe e legumes para partilhar.
O gesto, comum sobretudo ao jantar, vai além da necessidade alimentar.
"É por amizade", diz Maria, explicando que os vizinhos acabam por ser mais próximos do que os próprios familiares, que moram longe.
"Antes de os meus irmãos ouvirem que estou doente ou com dificuldades, o meu vizinho já percebeu e ajudou", relata.
Um dia chegou do campo, sem nada pronto para o jantar.
“As crianças estavam com fome e eu tentava preparar algo, quando o meu vizinho apareceu com um prato de comida. Fiquei muito feliz", conta a moradora de Praia Baixo, que gere a casa onde vive com o marido e outras em redor, com nove filhos por perto.
Domingas Martins, 55 anos, diz que a troca é um hábito, pelo prazer da partilha, como "um símbolo de solidariedade, pequenos gestos que podem criar laços muito fortes”.
"Faço cachupa [prato típico, símbolo do país] e preparo sempre um pouco mais para partilhar. Hoje fui à missa e, quando voltei, a minha vizinha já tinha trazido um prato para a minha filha. Isto é pura amizade", explica.
A troca de alimentos entre vizinhos é um costume antigo em Cabo Verde, enraizado em valores de solidariedade e entreajuda num arquipélago árido em que a escassez de alimentos faz parte da história e identidade cultural.
Esta tradição é praticada sobretudo em zonas rurais, onde as relações entre vizinhos são mais frequentes e a entreajuda faz parte do quotidiano.
Para José Fernandes, 37 anos, que agora vive na capital, cidade da Praia, a troca de alimentos marcou a infância.
"Na zona em que eu moro há mais de 10 anos, na cidade da Praia, não conheço os vizinhos, nem os que moram no mesmo prédio”, o que torna inviável o hábito de “trocar um prato”.
“Em Praia Baixo, os meus pais e vizinhos sempre o fizeram", refere à Lusa, recordando o momento em que os pais trocavam um prato de cachupa por outro de arroz, "sempre na hora do jantar".
Victor Gonçalves, 30 anos, culpa a globalização, diluindo tradições, como as cabo-verdianas, que têm desaparecido, mas acredita que nem tudo são maus sinais.
"Se algo se perde, também se ganham novas formas de ligação. Cada geração tem as suas maneiras de socializar", aponta.
O sociólogo Henrique Varela considera que a troca de alimentos mostra o "enorme espírito de solidariedade e partilha com o próximo" em Cabo Verde.
A prática permite também "desenvolver um outro valor nas relações sociais que é a empatia", indica à Lusa.
"Isso demonstra que a união permite reforçar os laços da vizinhança, funcionando como uma verdadeira família em que impera a fraternidade e o altruísmo", defende, apontando que a troca de alimentos demonstra uma atitude que pode servir de exemplo ao desenvolvimento de políticas públicas que visam suprir a insegurança alimentar.
Iniciativas sociais que já estão no terreno, para apoio direto a famílias mais vulneráveis, podem evoluir com parcerias entre o setor público e privado para distribuição de cestas básicas, entre outros.
A Semana com Lusa
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